Crónica da morte anunciada do VIII Congresso dos Advogados Portugueses

“Existem várias formas de pobreza. E há, entre todas, uma que escapa às estatísticas e aos indicadores numéricos: é a penúria da nossa reflexão sobre nós mesmos.”
Mia Couto

No dia de Santo Ivo, padroeiro dos Advogados e das Advogadas, fomos confrontados com uma realidade que todos desconhecíamos. Um vídeo, publicado na página oficial de Facebook, da Ordem dos Advogados, informou-nos que a Justiça está a melhorar. Corria tranquilamente o mês de Maio e tão súbita e espantosa novidade – veiculada pelo actual Presidente da Ordem dos Advogados –  bem poderia ser um milagre do Santo que naquele dia se comemorava.

Todavia, os acontecimentos que sobrevieram, rapidamente, desmistificaram tal possibilidade. Afinal, tratar-se-ia apenas daquilo que Amartya Sen identificou como Justiça comparativa, a ideia de Justiça baseada em juízos comparativos da realidade (uma das correntes de pensamento sobre a Justiça saídas do Iluminismo).

Ou seja, se pensarmos no estado a que chegou a Ordem dos Advogados, comparativamente, podemos, então, admitir, sim, que a Justiça está a melhorar.

Se não, vejamos o seguinte: o Órgão máximo da Ordem dos Advogados – o Congresso – vai reunir em Viseu, em meados deste mês e a fractura entre a Advocacia portuguesa e quem a representa é profunda e está exposta.

As comunicações produzidas por aqueles que “politicamente” (em termos de afinidade ideológica de pensamento para a Advocacia) se filiam no actual Dirigente máximo da Ordem dos Advogados, deixam perceber, de forma cristalina, o que pretendem para o futuro da profissão: uma cisão que lhes permita excluir uns quantos Colegas e, se possível, com base em razões de índole económica (ao mesmo tempo que se clama por competência técnica, num curioso paradoxo em que se encerra quem denota desconhecer  – ou pretendeu desconsiderar, o que será mais grave – a falta de conformidade de uma proposta desse jaez com a Lei Fundamental).

Tristemente, são ventos que sopram do Norte e nos transportam para a frase caricatural da personagem que se auto-epitetava de “Príncipe Dinamarquês” – Caco Antibes – “pobre é uma coisa horrorosa”! “Pobres”, na Advocacia será, simplesmente, inadmissível.

E são ventos que provêm de um Delegado eleito pela da Lista da circunscrição do Conselho Regional do Porto, encabeçada por quem, actualmente, preside a esse Conselho Regional.

Se os escritos só podem vincular quem os produz, quem encabeça uma lista não deixa de ter a responsabilidade inerente a compreender, previamente, que na mesma integra alguém que defende uma visão sectarista e discriminatória para a Advocacia.

E, a Norte, onde alguns parecem ter esquecido que “podemos trocar os vês pelos bês, mas não trocamos nunca a liberdade pela servidão”, o Congresso dos Advogados fez correr mais tinta, virando-se o disco para se tocar sobre o mesmo: dinheiro! Já que o Conselho Regional do Porto, a quem não se conhece o rasgo, nem é possível recordar e/ou imputar uma única medida, útil, em defesa da classe, acordando da “catalepsia ambulante” em que tem permanecido no seu mandato, se apressou a clarificar o que não iria pagar e a quem não iria pagar, para não parecer insensível em relação a outros Conselhos Regionais do País que possam ter tais “assomos de bondade exacerbada”, para com Colegas que se dispõem a perder o seu tempo, o seu empenho e o seu dinheiro, honesto e esforçado, para falar à sua Ordem (muitos deles mesmo não dispondo de recursos económicos para prestar qualquer caução para exercer a Advocacia, quanto mais para falar – de igual para igual, num Congresso – às mais altas figuras do dirigismo daquela Associação Pública Profissional, mas não sendo, por isso, menos ou piores Advogados/as).

Por outro lado, injustamente, lança-se o anátema sobre os/as Advogados/as que participam no sistema de acesso ao direito e aos tribunais, na prossecução de um fim de interesse público e no cumprimento de uma imposição decorrente do facto de vivermos num Estado de Direito democrático, bem como do comando Constitucional ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, apressando-se alguns, que integram Institutos da Ordem dos Advogados, a impor-lhes um ónus acrescido de formação obrigatória, porventura indiciando que estes/as Advogados/as não cumprirão um dever estatutário que sobre os/as mesmos/as – como sobre todos/as nós – já impende.

Adicionalmente, a segregação surgiu ainda sob a forma de “selecção” das comunicações ao Congresso que seria, ou não, conveniente admitir à discussão, o que motivou a interposição de recursos por banda dos respectivos signatários para que lhes não fosse cerceado, pela Ordem dos Advogados, o Direito à palavra escrita e falada. Num juízo, cujo critério é difícil de alcançar, entendeu a Ordem dos Advogados que falar sobre a CPAS (em cuja inscrição é obrigatória, pelos/as Advogados/as, para o exercício da profissão) não tinha cabimento num evento como este, mas falar em excluir Advogados/as por não possuírem retorno financeiro de monta – com o exercício da Advocacia – mesmo que atente contra, pelo menos, o disposto no artigo 18.º da CRP, já deve ser discutido.

A minha posição é muito clara: entendo que todos devem ter direito a dizer ao Congresso que quiserem, bem como é apodítico que disso se extraiam as devidas consequências e a correspondente responsabilidade, posto que não há direitos ilimitados e o exercício dos mesmos deve ser feito em e com responsabilidade.

E, quando todos pensávamos que eram incidentes a mais – perfeitamente indesejáveis – para um só Congresso, surge a “dança das cadeiras”. Pois bem, a selecção desta espécie – a dos/as Advogados/as – prende-se, agora, pasmem-se, com o número de cadeiras existentes! Ou seja, ainda que nos termos do Regimento do VIII Congresso dos Advogados portugueses, os/as Advogados/as tenham direito a participar no mesmo vêem-se, alguns e algumas, confrontados/as com a impossibilidade de o fazer porque a lotação está esgotada!

O resultado está à vista, no mesmo ano a Advocacia portuguesa convoca a segunda manifestação, para reivindicar direitos próprios, contra a sua própria Ordem, em algo inédito em quase cem anos de existência da mesma.

Fui Delegada eleita pela área da circunscrição do Conselho Regional (então, Distrital) do Porto, no VII Congresso, em 2011, e tinha o firme propósito de não me dirigir ao VIII Congresso, mas vejo-me obrigada a fazê-lo, aqui e agora, em homenagem a todos/as aqueles/as que amam a Advocacia Livre, Independente e Prestigiada e que todos os dias, da sua bancada, por esse país fora, com o seu desempenho profissional, contribuem para assegurar o prestígio da Ordem dos Advogados.

Não são os cargos na Ordem dos Advogados que prestigiam as Pessoas, é precisamente o inverso. Assim, em face do quadro acima descrito –  porque há coisas que não podemos fingir que não estão a acontecer e porque há momentos em que não podemos silenciar que percebemos o que está em causa – estes Dirigentes não podem cair! Têm de sair, nas próximas eleições, e com benzina… o resto, Eça já, há muito, no-lo ensinou!

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