“Na tua luta contra o resto do mundo, aconselho-te que te ponhas do lado do resto do mundo.“ Franz Kafka

Um modelo de sociedade evoluída pressupõe a cultura de exercício activo de direitos. Para que se cumpra este direito subjectivo, é necessário conceber e garantir o funcionamento de um sistema de Justiça com capacidade para servir os/as cidadãos/ãs e empresas, independentemente da capacidade económica ou financeira de quem dele necessita.

Só assim se concretiza materialmente o direito de aceder à Justiça! Só assim se garante o cumprimento do direito fundamental de cada um de nós aceder ao Direito – assegurando-se o direito ao patrocínio judiciário e à informação e consulta jurídicas, que dimanam desse patrocínio – e aceder à Justiça, recorrendo aos Tribunais para obter a tutela jurídica dos seus interesses ou direitos que se encontrem enfraquecidos ou em crise numa qualquer questão controvertida.

E, se é ponto assente que o acesso ao Direito e à Justiça não pode ser negado a quem quer que seja, não deixa de ser verdade, igualmente, que a realização deste corolário constitucional só permite alcançar o resultado prático pretendido com o recurso aos meios jurisdicionais. É uma incumbência do Estado de Direito (que somos todos nós) preservar e garantir este direito, criando mecanismos para que permitam a adequação, a eficácia, a proporcionalidade, a igualdade e a celeridade na administração da Justiça!

 Não cumprir cabalmente este comando constitucional, materializado como uma verdadeira Garantia, será abjurar o Estado de Direito democrático e transformar o sistema de acesso ao Direito e aos Tribunais num mero enunciado filosófico, político ou programático.

A garantia do acesso ao Direito e aos Tribunais é condição sine qua non para que os demais direitos, liberdades e garantias se efectivem também e a sua essencialidade é por demais óbvia, além de dimanar do facto de ser um pressuposto essencial para a concretização de outros direitos não reconhecidos ou não garantidos eficazmente.

Todos percepcionamos, no que à Justiça portuguesa respeita, que são muitas as desigualdades que a pontuam, especialmente se pensarmos no acesso ao Direito e à Justiça.

As sucessivas reformas (sempre avulsas) que têm sido feitas no nosso sistema de Justiça nunca tiveram a qualidade para combater discriminações, designadamente de carácter económico, social e cultural; naturalmente, os mais evidentes e os geradoras de maior controvérsia são os entraves económicos que “barram” as portas dos Tribunais e outros meios de resolução de conflitos àqueles/as que os/as procuram.

Um aspecto deveria ser tido como prioritário: a necessidade de pugnar por Justiça nas próprias relações jurídicas que se constituem, desenvolvem e se extinguem diariamente, várias vezes ao dia, mormente em função da forma padronizada de contratação das sociedades modernas. A constituição obrigatória de Advogado e de Advogada, no âmbito daquelas relações jurídicas – mesmo em sede pré e extrajudicial – que possam colocar em causa direitos fundamentais é um imperativo mínimo de dignidade que o Estado português deveria assegurar às/aos beneficiárias/os do sistema, há muito! Só desta forma se assegura, efectivamente, a igualdade de Todos/as perante a Lei.

A discussão da qualidade do sistema de acesso ao direito tem sido feita, e bem, sempre da perspectiva dos/das beneficiários/as, pois é em função destes que este tem de ser concebido. Dizer coisa diversa é não compreender minimamente a razão de ser da consagração deste direito fundamental e o âmago da função de Advogar.

Também facilmente se compreende que o patrocínio forense deve ser assegurado por profissionais experientes e preparados e, esses/as profissionais são, sem dúvida, os/as Advogados/as, cuja função social, de tão relevante, reclama o indiscutível reconhecimento público da sua dignidade. Assim, não se poderá admitir a hipótese de o sistema de acesso ao direito e aos tribunais deixar de ser assegurado exclusivamente pela Advocacia, como decorre de recente alteração legislativa nesse sentido, nem aceitar que o debate sobre o custo inerente ao seu funcionamento possa continuar a ser adiado, como é o caso da revisão das tabelas remuneratórias.

Não sendo a Ordem dos Advogados confundível com um Sindicato, incumbe-lhe preservar e defender intransigentemente a dignidade dos/das seus/as representados/as, a qual também passa pela exigência inadiável de uma remuneração digna e adequada aos serviços que os mesmos prestam e à responsabilidade que assumem, na representação de terceiros, quer sejam estes terceiros a suportar os honorários, quer seja o próprio Estado. Só desta forma, a Ordem dos Advogados cumpre as suas obrigações estatutárias!

Sejamos claros: amiudadamente, o SADT- Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais – é utilizado quando há eleições próximas, com recurso a retórica vã, pejada de lugares comuns, numa lógica demagógica que não promove o debate de propostas sérias, exequíveis e concretas que outras Ordens têm a capacidade e resiliência de apresentar junto do Ministério da tutela.

Os incumbentes afirmam que não são responsáveis pelo estado do Sistema e que apenas se “limitaram” a não fazer nada para o melhorar, aceitando assim o menor dos males de serem penalizados pela inércia ou incapacidade de contrariar as alterações propostas por outros intervenientes – como aconteceu recentemente com a Ordem dos Advogados que não conseguiu deter a entrada dos Solicitadores no SADT. Já por seu turno, alguns dos que se candidatam, prometem mudar tudo, com grande alarido e estridência, mas sempre com a cautela de não dizer como, o que constitui fórmula eficaz para, uma vez eleitos, permitirem que tudo fique igual ou que alguém altere para pior.

E se há mais de 10 anos se iniciou uma melhoria significativa neste sistema de acesso ao direito e aos tribunais, da perspectiva dos/das beneficiários/as, o que contou com um relevante e activo contributo da Ordem dos Advogados, também não deixa de ser verdade que, no último triénio que se completa em breve, a Ordem dos Advogados não só não geriu, ainda que de modo sofrível, aquilo que construiu, como exarou por punho próprio uma declaração de ineptidão para preservar as conquistas passadas!

A Ordem dos Advogados não conseguiu demonstrar ao poder político o que é uma evidência: a inadmissibilidade de se repartir a intervenção no sistema de acesso ao Direito e aos Tribunais com outros profissionais que não sejam acreditados pela própria Ordem, contribuindo, desta forma, para que se justifique a manutenção do status quo remuneratório, estribada numa qualificação inferior de outros profissionais.

Na realidade, a Ordem dos Advogados ao permitir a aprovação da última alteração ao Regime do Acesso ao Direito e os Tribunais, lançou a primeira pedra para o fim do modelo actual e a sua substituição pelo do Defensor Público.

Seria difícil fazer pior e, no mesmo diploma legal, recuar civilizacionalmente tantos anos por inabilidade e falta de uma antevisão do Futuro! Obliterando, por um lado, a mais do que justa prerrogativa de exclusividade do patrocínio desenvolvido pelos/as Advogados/as, reduzir e frustrar as garantias de defesa dos/as patrocinados/as, alienando “território” que deve manter-se alocado exclusivamente à Advocacia e, por outro lado, nada ter feito para pugnar pela actualização condigna dos honorários dos profissionais do foro, cuja dignidade é seu dever inalienável defender!

Ante este desafio e oportunidade com que se deparou e quando teve de escolher colocar-se ao lado do “resto do Mundo” ou da Advocacia portuguesa, em matéria de acesso ao direito, a Ordem dos Advogados claudicou, seguindo o conselho cómodo de Kafka, mas desprezando os interesses daqueles que deveria ter representado nessa luta contra o resto do mundo!

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