A 3 de agosto, em virtude de causa ainda não determinada, um incêndio deflagrou num parque de estacionamento de um festival de música, carbonizando por completo 422 viaturas e seus recheios.
Um sinistro com estas dimensões não é usual e é apto a gerar uma verdadeira reviravolta nos balanços de qualquer seguradora que venha a ser considerada responsável pelo pagamento das indemnizações devidas na sequência do referido incêndio.
Mas afinal, neste caso, que seguradora poderá, em termos teóricos, vir a ser responsabilizada?
A verdade, é que pode suceder que não seja nenhuma. Tudo dependerá da causa do sinistro.
Independentemente das responsabilidades que venham a ser apuradas, certo é que os lesados que possuam seguros individuais de danos próprios das viaturas poderão desde já participar o sinistro e serem ressarcidos dos seus prejuízos pelas suas próprias seguradoras, sem prejuízo destas, posteriormente, virem a exercer o seu direito de regresso contra aquela(s) que venha(m) a ser declarada(s) responsável(eis).
Isto posto, se se apurar que existiu mão criminosa na origem e/ ou propagação do incêndio, nenhuma seguradora será responsabilizada e só ao autor do crime poderá ser assacada responsabilidade civil, nos termos gerais, além da responsabilidade criminosa.
Se se vier a apurar que a origem do incêndio ocorreu num veículo determinado e dele se propagou para os restantes veículos, então, a responsabilidade recairá sobre o proprietário do veículo, o qual transferiu a sua responsabilidade, por força do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel que obrigatoriamente teve de celebrar, para uma seguradora. Será então essa a seguradora a responsável por todos os prejuízos, até ao capital mínimo obrigatoriamente seguro.
Mas o problema mais relevante e interessante nesta situação em análise advém do facto de o sinistro ter ocorrido dentro de um parque de estacionamento afecto a um recinto onde decorria um festival de música.
Neste caso, será a organização do evento obrigada a possuir seguro de responsabilidade civil?
Em caso afirmativo, em que circunstâncias poderá essa seguradora ser responsabilizada?
É que, caso se prove que o sinistro (incêndio) só atingiu tais proporções devido a falta de condições do parque de estacionamento ou, que essa falta de condições, em muito contribuiu para o início do incêndio, poderá a seguradora com quem a organização celebrou um contrato de seguro vir a ser – individual ou solidariamente – responsabilizada, tendo de comparticipar nas indemnizações devidas aos lesados, numa espécie de concorrência de culpas, caso não seja a única a ser responsabilizada.
Tem-se sustentado a obrigatoriedade de celebração de seguro de responsabilidade civil por parte das entidades responsáveis pela propriedade e/ou exploração de recintos de espetáculos de divertimentos públicos na alínea b) do n.º 5 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 309/2002, de 16 de dezembro, de onde resulta que a instalação e o funcionamento dos recintos de espetáculos e de divertimentos públicos carece de licença de utilização, mas para a emissão dessa licença é necessário um requerimento acompanhado de cópia simples da apólice de seguro de responsabilidade civil válida.
Dito isto, importa salientar desde logo dois aspetos importantes.
Primeiro, o Decreto-Lei n.º 309/2002, de 16 de dezembro, no seu art. 1.º, n.º 2.º alínea a), exclui do seu âmbito de aplicação os recintos de espetáculos de natureza artística previstos no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 315/95, de 28 de Novembro, que no seu n.º 2, alínea c), considerava como atividades artísticas a música. Mas este último diploma legal foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 23/2014, de 14 de Fevereiro, que aprova o regime de funcionamento dos espetáculos de natureza artística e de instalação e fiscalização dos recintos fixos destinados à sua realização bem como o regime de classificação de espetáculos de natureza artística e de divertimentos públicos.
Este diploma legal justificou-se com a necessidade de atualização do “quadro legal que norteia a realização de espetáculos de natureza artística e introduzir mecanismos mais simplificados, sem contudo descurar a defesa e proteção dos direitos do consumidor, a segurança de pessoas e bens” eliminando “o procedimento associado à atual licença de representação, adotando-se a mera comunicação prévia como procedimento necessário para a realização desses espetáculos”.
Desta forma, dispõe o art. 16.º, n.º 1 que o “início de funcionamento dos recintos de espetáculos de natureza artística depende da apresentação de mera comunicação prévia à IGAC, acompanhada do pagamento da taxa devida” e instruída por vários elementos, entre os quais a “apólice de seguro de responsabilidade civil e de acidentes pessoais ou garantia ou instrumento financeiro equivalentes, nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 92/2010, de 26 de julho, subscrita pelo proprietário ou pelo explorador do recinto, que cubra os danos e lesões provocados aos utilizadores em caso de acidente”.
Assim, independentemente de se questionar qual dos diplomas mencionados se deve aplicar in casu – se o Decreto-Lei n.º 309/2002, de 16 de dezembro ou se o Decreto-Lei n.º 23/2014, de 14 de Fevereiro – está ultrapassada a questão sobre a obrigatoriedade daquela organização do festival de música em celebrar um contrato de seguro de responsabilidade civil, pelo que tal contrato deve necessariamente existir.
Outra questão importante é saber quais os moldes em que tal contrato de seguro deve existir, ou seja, quais as coberturas mínimas e qual o capital mínimo a segurar.
É que sendo a celebração do contrato de seguro obrigatório, encontram-se as seguradoras subordinadas ao procedimento previsto no art. 39.º, n.º 2, da Lei n.º 147/2015, de 9 de setembro, que impõe às seguradoras que queiram explorar um seguro obrigatório, a obrigação de comunicar à Autoridade de Supervisão de Seguros e de Fundos de Pensões as condições gerais e especiais das respetivas apólices, bem como das correspondentes alterações, as quais serão divulgadas no sítio da referida Autoridade na Internet. Porém, tal comunicação e divulgação não se aplica aos seguros relativamente aos quais não seja possível determinar a cobertura ou o capital mínimo obrigatório.
Dito isto, consultado o site da Autoridade de Supervisão de Seguros e de Fundos de Pensões, de lá não constam as ditas condições gerais e especiais relativas à apólice do seguro de responsabilidade civil que as entidades responsáveis pela propriedade e/ou exploração de recintos de espetáculos de divertimentos públicos se encontram obrigadas a celebrar, pelo que nada se sabe sobre as quais as condições de cobertura e exclusões contratadas pela organização do festival onde deflagrou o incêncio, muito menos se sabendo qual o valor do capital segurado.
Em esclarecimento oficial, a Autoridade de Supervisão de Seguros e de Fundos de Pensões refere que, acerca deste seguro obrigatório em particular, não se encontram legalmente consagrados os conteúdos mínimos obrigatórios, nomeadamente os capitais.
As lições a tirar deste sinistro para a atividade seguradora em geral é que:
- Embora não seja habitual atingir-se esta dimensão de prejuízos num só sinistro, e independentemente da descoberta da causa, cremos que não deveria perder-se a oportunidade para que o sector se reúna e delibere sobre formas de atuação e de resolução mais céleres para situações futuras, quiçá, repartindo-se por todas as seguradoras envolvidas e de forma proporcional os prejuízos totais que se apurassem, evitando que apenas sobre uma ou duas seguradoras recaísse toda a responsabilidade, gerando uma “crise” interna apenas numa instituição;
- Já dizia o ditado que “o seguro morreu de velho”, e não nos perdendo agora com considerações sobre a origem e real significado desta expressão, poderá agora a entidade supervisora do sector adotá-la e aproveitar para rever estas falhas de regulamentação de certos tipos de seguros obrigatórios, como a própria reconhece, e diligenciar por medidas de supervisão e controlo mais apertadas.
Em jeito de conclusão, o que se deseja é que este processo decorra dentro do mesmo espírito que emoldurou o ambiente no momento do incêndio, que embora desastroso, não causou alarme na maioria dos lesados que afirmaram estar tranquilos e seguros de que as seguradoras, seguramente, os não deixariam nas cinzas.
Assim esperamos.
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