“Não acredito que existam qualidades, valores, modos de vida especificamente femininos: seria admitir a existência de uma natureza feminina, quer dizer, aderir a um mito inventado pelos homens para prender as mulheres na sua condição de oprimidas. Não se trata para a mulher de se afirmar como mulher, mas de tornarem-se seres humanos na sua integridade.”
Simone de Beauvoir
Há 40 anos o Código Civil português de 1966 submetia-se ao “bisturi” e conhecia uma transformação no âmbito do direito da família, a qual surgiu na decorrência da alteração constitucional, que remonta a 1976, e enfatizou a necessidade do respeito pela igualdade, bem como da reforma da Concordata ocorrida em 1975.
Resulta algo inelutável da reforma de 1977: o estatuto da Mulher saía reforçado, rumo à igualdade entre Mulheres e Homens, o que ficou patente, mormente, na configuração jurídica do contrato de casamento (em face da então consignada, de forma inovadora, igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges), nas formas de extinção do vínculo do casamento, na maior valorização do trabalho feminino, na alteração dos direitos sucessórios do cônjuge sobrevivo, numa maior paridade da situação da mulher, enquanto Mãe (não obstante ter permanecido a terminologia “poder paternal” ao invés da actualmente utilizada “responsabilidade parental.”)
Com efeito, ainda que assim possa não parecer, estamos em face de uma Reforma absolutamente revolucionária, encetada por visionários, que tiveram o rasgo e a ousadia de travar o bom combate, colocando-se, assim, do lado certo da história, no seio de uma sociedade enformada por um sistema patriarcal e absolutamente atávico.
Diga-se em abono do rigor, que esta “tradição” da menorização da Mulher pelo Direito tem raízes ancestrais, radicando no Direito Romano (no âmbito do qual à Mulher era negada a capacidade jurídica), sendo de notar que seria desfasado da realidade negar a evidência de que tal influência tem perpassado Diplomas Legais e mantém, lamentavelmente, uma força vital tal que a fez alastrar até aos nossos dias, por mais incrível que nos possa parecer.
Não fora a existência de sucessivas alterações legislativas no sentido de aproximar o estatuto da Mulher ao do Homem, naquilo que hoje nos parece aberrante que assim não seja, e estas linhas singelas, se produzidas por uma Mulher casada, só poderiam “ver a luz do dia” e chegar a todos e a cada um de vocês se, para tanto, a sua autora obtivesse de um Homem, o seu Marido, autorização. Status que só o advento da implantação da República viria a alterar (mais concretamente através da entrada em vigor na nossa ordem jurídica das denominadas Leis da Família de 1910).
Em boa verdade, são muitas as gerações que foram ainda educadas sob a égide, quer do Código de Seabra, quer do Código Civil português na sua versão primitiva (a de 1966) – ou seja nas redacções anteriores à redacção introduzida pela Reforma de 1977 – de onde dimanava uma limitação da capacidade da Mulher, sendo patente uma predominância do papel do Homem (“Chefe de Família”), o qual exercia o “poder marital”.
A Mulher estava, pois, legalmente predestinada a ser objecto de direitos, ao invés de sujeito de direitos: assim, deixava de “pertencer” aos pais, que sobre os filhos exerciam o “poder paternal”, para estar subjugada ao Homem (o Marido), com quem decidia estabelecer “comunhão” de vida, sendo este o elemento do casal que efectuava a administração do património. Este “poder marital” havia de permanecer intocado, entre nós, até à Reforma que comemora este ano uns parcos 40 anos de vida, já que o Código Civil português de 1966 o acolheu em toda a sua magnitude, em detrimento e com evidente prejuízo para os direitos das Mulheres. E, nesse contexto, até muito recentemente, o Marido detinha o poder de decisão sobre todos os actos da vida do casal.
No Código Civil do Visconde de Seabra o estatuto da Mulher estava ainda muito próximo daquele que a mesma possuía no domínio de vigência das Ordenações (a Mulher não podia prestar Fiança, por ser considerado um “espirito débil” para as actividades de pendor comercial; ou ser procuradora em juízo; bem como lhe estava vedado o exercício de funções de tutora ou, sequer, de vogal do Conselho de Família, o qual era exclusivamente composto por Homens).
No Código de Seabra o sistema patriarcal surge na sua plenitude ao prever-se, de forma expressa, o dever de obediência da cônjuge Mulher ao Marido, sendo legítimo ao Marido lançar mão de um mecanismo de entrega coerciva da Mulher, acaso esta o deixasse.
Deve a este respeito sublinhar-se que, no domínio dessa mesma legislação, a Mulher não podia, de todo em todo, dispor dos seus bens e os negócios jurídicos que celebrasse sem a necessária autorização do cônjuge Marido eram inválidos, porquanto feridos de nulidade. Mas, de igual modo, lhe estava vedada a administração de quaisquer bens (quer os do casal; quer os próprios, ou, até mesmo os proventos do seu próprio labor). Regra esta que nunca poderia ser afastada, integralmente. Importando acrescentar que, no caso de uma mulher viúva – com filhos – que voltasse a casar, após os 50 anos de idade, a mesma via a possibilidade de dispor dos seus bens limitada. Porém, esta mesma limitação não encontrava lugar paralelo no que respeitava aos Homens.
A dependência da Mulher em face do Marido era acentuada, até pela ausência de possibilidade de subsistir economicamente e, da qual, nem por via do instituto do Divórcio se podia libertar, porquanto tal instituto jurídico nem sequer existia. E, se na letra da Lei, estava prevista a separação judicial de pessoas e bens, esta não tinha muita aplicação prática, verificando-se que até nos seus fundamentos o legislador menorizava a Mulher (v.g. no caso de a mesma se estribar no adultério, se ao Homem bastava a sua invocação, sem mais, já a Mulher necessitava, entre outras razões igualmente degradantes para a sua dignidade, que o seu Marido o perpetrasse com público escândalo, o que era um desincentivo de monta para que a Mulher o requeresse, por vexatório, invasivo e dilacerante para a sua honra, numa sociedade onde era claramente oprimida e, em toda a linha, inferiorizada).
Como resulta do texto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2015, o qual visou uniformização de jurisprudência, “(….)o regime pretérito ao Código Civil de 1966 estabelecia um regime discriminatório, concedendo ao marido amplos poderes de administração dos bens conjugais.”
Mas também como Mãe, a Mulher era, na Lei, à época, tratada de forma desigual e, indubitavelmente, menorizada. Era ao Pai, na qualidade de Chefe de Família (figura que o Código de 1966 viria, de igual modo, a acolher), a quem incumbia todas as decisões e tarefas de relevo na vida dos filhos, possuindo “voto de qualidade” sempre que não houvesse concordância entre os dois progenitores.
Curiosamente, este foi o estatuto de subalternização que o legislador pátrio reservou para a Mulher até 1977, estribo de uma sociedade opressora para a mesma, pejada de dissimulação e com uma, iniqua e indesejável afirmação da preponderância do Homem, fragilizando – de forma inaceitável, injustificada e ultrapassada (já que ao nível do direito comparado e do direito internacional a tendência era a de serem plasmadas normas no sentido de um estatuto paritário) – a condição da feminina.
Mas a “audácia” opressiva da Mulher, pelo legislador pátrio do Código de 1966, é negativamente assinalável considerando que, por um lado, não ampliou os direitos das Mulheres, tomando por terno de comparação os que estavam plasmados no Código de Seabra, mas, por outro lado, alargou os seus deveres. Atente-se no facto de, com a entrada em vigor do Código Civil português de 1966 – e pensamos que tal sucedeu por força do ingresso da Mulher no mercado de trabalho –, para esta ter passado a emergir da celebração do Contrato de Casamento a obrigação de contribuir com os proventos do seu trabalho para as despesas da casa. Mas, convém, salientar que, a acrescer ao desempenho profissional, “fora de portas”, era ainda a Mulher, na sua veste de “Dona de Casa”, a quem competia governa-la. Evidenciando o Código um desprezo pela função da maternidade, claramente tratando o ventre materno e o corpo da Mulher como mero objecto que permite prosseguir os fins de procriação, para a perpetuação da espécie, mas aniquilando qualquer poder decisório que à mesma pudesse e devesse caber, na defesa e protecção dos interesses dos seus filhos!
Esta visão absolutamente castradora formatou toda uma mentalidade colectiva e possui lastro secular (se pensarmos no tempo que transcorreu até à Reforma de 1977), facto que não é de menosprezar quando, em jeito de balanço, por ocasião desta efeméride, pensarmos se o espírito da Reforma já penetrou tão profundamente quanto se desejaria na sociedade portuguesa.
Pensamos que há ainda um longo caminho a percorrer, rumo à igualdade efectiva, para que as Mulheres sejam, na sua plenitude, encaradas como Seres Humanos, iguais aos Homens em direitos e dignidade e que muito há a fazer na supressão das desigualdades e na erradicação da violência que contra as mesmas é, quotidianamente, perpetrada, para que se possa dar alma à Reforma da há 40 anos e a mesma ultrapasse a realidade codificada e se anime. Mas estamos em crer que a tendência progressista, rumo à igualdade efectiva se afirmará e que nem os mais recentes eventos disruptivos, que a “nova” ordem mundial tem produzido, poderão permitir travar a força desta conquista, por estarmos perante um imperativo de Justiça.
Sobretudo, tudo quanto não poderemos – responsabilizando-se com particular acuidade os juristas – é ficar quedos, mudos e cúmplices ante as injustiças a que as Mulheres ainda estão, inaceitavelmente, sujeitas. Parafraseando a jurista estunidense Catharine MacKinnon, muito pertinentemente citada por Maria Teresa Féria de Almeida, num artigo intitulado “Se as mulheres fossem seres humanos”, estamos em crer que se as Mulheres já fossem, de facto, iguais, já fossem, de facto, seres humanos, estas desigualdades (e todos os actos de violência banalizada e como que placidamente aceite) jamais poderiam acontecer sem que virtualmente nada fosse feito a respeito.
É com facilidade palmar que se tem de concluir que só com a igualdade efectiva, não apenas formal, em direitos e dignidade, para Homens e Mulheres, se poderá criar uma sociedade em que todos se respeitem, com cariz de reciprocidade, encarando-se, sobretudo, como Seres Humanos.
De tudo o quanto aqui se deixou consignado percebemos também que, ainda hoje, 40 anos após a Reforma do Código Civil, as palavras sobreditas são um enunciado bastante ambicioso, mas pelo qual ninguém – e mormente a comumente denominada “comunidade jurídica” – deve cessar de pugnar para que seja realizado, como realidade substancial e efectiva.
Na esteira do jurista Hugo de S. Vítor – mencionado por Elina Guimarães no seu texto «A mulher portuguesa na legislação Civil» – neste mês internacional da Mulher, o estatuto que reclamamos para a mesma é tão-só este: “Nec Domina, nec Ancilla, sed Socia”.
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