O (derradeiro) desmoronamento dos muros da privacidade no direito sancionatório da concorrência?

A Diretiva 2019/1/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018 (na gíria, apelidada de Diretiva ECN+) pretende responder a uma identificada necessidade de maior efetividade e eficácia na aplicação do direito da concorrência europeu e nacional – e de assegurar a uniformidade dessa efetividade e eficácia – pelas autoridades da concorrência dos Estados-Membros.

A solução para a efetividade e eficácia do enforcement do direito da concorrência parece procurar-se, como, aliás, tem sido a tendência quer do Legislador europeu quer do nacional (por imposição ou não daquele) também noutras áreas do Direito, no reforço das competências de investigação e sancionadoras das autoridades, neste caso das autoridades da concorrência nacionais.

Pese embora a Diretiva ECN+ (re)afirme que os processos relativos às infrações em matéria de direito da concorrência previstas no Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE) estão sujeitos aos princípios gerais de direito da União e à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta), e, em particular, aos direitos e garantias de um due process, a verdade é que tal afirmação é mais bem-intencionada do que consequente.

Em primeira linha, porque a Carta tem como destinatários apenas as instituições, os órgãos da União e os Estados-Membros quando apliquem o direito da União e o objetivo da Diretiva é, por natureza, a transposição das suas soluções para o Direito nacional dos Estados-membros.

Em segunda linha, porque poderá equacionar-se se o fim da eficácia e da efetividade do direito da concorrência não terá sido levado para além dos limites que a garantia dos direitos fundamentais – quer do suspeito ou visado pelo processo, quer de terceiros – impõe.

É que a procura de soluções para dar resposta aos desafios do mundo e das provas digitais teve como reflexo a previsão da possibilidade de serem apreendidas mensagens de correio eletrónico que pareçam não ter sido lidas ou, inclusivamente, que tenham sido apagadas pelos seus destinatários.

Do mesmo modo, o propósito de combater o engenho dos infratores na ocultação da prova necessária à demonstração do ilícito levou à sugestão, nos considerandos da Diretiva ECN+, da admissão e utilização, como meios de prova para investigação de infrações aos artigos 101.º e 102.º do TFUE, de gravações ocultas efetuadas por pessoas singulares ou coletivas, que não sejam autorizadas por autoridades públicas, desde que essas gravações não sejam o único meio de prova.

Reconhecendo-se que a uniformidade do enforcement do direito da concorrência, de matriz marcadamente europeia, é muito importante para o bom funcionamento do mercado interno, questionamo-nos sobre a necessidade destas soluções no contexto dos diversos direitos e tradições nacionais, mas, principalmente, sobre a proporcionalidade de admitir estes meios de prova face à compressão que os mesmos, necessariamente, realizam noutros direitos e garantias, de índole fundamental, como a garantia do sigilo da correspondência, os direitos à reserva da intimidade da vida privada, à privacidade, à palavra e à imagem.

Num mundo em que tantas vozes se erguem contra a devassa da privacidade digital (e os perigos da mesma) há um contraste evidente com as soluções desta Diretiva, que parecem ser insensíveis a essas críticas e a esses perigos. É que a Diretiva procura servir-se da tecnologia – e da sua natureza intrusiva – para, com base na mesma, investigar a prática de ilícitos, afetando a privacidade e as garantias de sigilo e reserva de quaisquer pessoas (e não necessariamente apenas dos suspeitos de qualquer infração).

Note-se que estes meios de prova deverão poder ser usados num foro que corre junto de uma autoridade pública, independente, é certo, mas que investiga ilícitos cujos bens jurídicos não têm, ou pelo menos assim tem entendido o Legislador nacional, nem dignidade nem necessidade de tutela penal, sendo certo que muitas das soluções da Diretiva vão, parece-nos, mais além na restrição do sigilo da correspondência, da reserva da intimidade da vida privada e da privacidade, do que é permitido, legal e constitucionalmente, em sede de investigação de ilícitos criminais.

A Diretiva ECN+ tem de ser transposta até 4 de fevereiro de 2021, existindo já um anteprojeto de transposição elaborado pela Autoridade da Concorrência.

Perante as questões de conformidade com a Constituição que as soluções da Diretiva, e também aquelas que estão a ser propostas para a sua transposição, levantam, resta-nos esperar que a mesma não seja transposta sem que se averigue, preventivamente, da conformidade dessas soluções com a nossa Lei Fundamental.

Joana Bernardo – Forum Penal Associação de Advogados Penalistas

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