A 18 de Setembro de 2019, os Países Baixos, e toda a Europa, acordaram chocados com a notícia da morte do Advogado e nosso Colega penalista Dierk Wiersum. Morto à porta de casa, numa execução sumária, abatido a tiro por um encapuzado cuja identidade está por apurar. Deixa mulher e dois filhos, menores de idade. Foi assassinado um Colega penalista com larga experiência empenhado na defesa dos seus clientes e dos direitos fundamentais no processo penal e no direito penitenciário, envolvido em organizações não governamentais.
A comunidade judiciária neerlandesa, e internacional, apelidou o seu assassinato de atentado ao Estado de direito. Porquê? Porque Dierk Wiersum foi, alegadamente, assassinado em razão de, nada mais, nada menos, ser Advogado e exercer o mandato forense. Por ser Advogado penalista. Nessa qualidade defendia um dos arguidos num processo envolvendo criminalidade organizada, inclusivamente dedicada a “liquidações”. Este arguido era um “arrependido”, um “colaborador”, uma “testemunha da coroa”.
Por várias vezes Dierk Wiersum tinha alertado as autoridades para o perigo que o seu próprio cliente e família corriam e para a insuficiência da protecção que lhes tinha sido conferida pelo Estado. Mas ninguém esperava que o próprio Advogado fosse assassinado, alegadamente por membros de uma associação criminosa envolvida no processo.
Estes acontecimentos são um exemplo – drástico – do resultado de uma cultura de falta de compreensão do papel do Advogado como essencial em um Estado de direito, e da diferença essencial entre o Advogado e o seu cliente.
Já sentimos na pele, como Advogados ou Advogadas penalistas, o diferente tratamento conferido em função do cliente que representamos. Diferença absolutamente injustificada, já que tentamos pautar-nos sempre pela mesma postura na defesa dos respectivos interesses, ainda que aguerrida, mas sempre correcta e nos limites do permitido pelas imunidades conferidas pelo mandato forense.
Já vimos como Colegas foram – em Portugal – quase atacados por populaças em fúria contra o respectivo cliente. E como Colegas – em Portugal – foram barbaramente assassinados pela parte contrária àquela que representavam (em matérias penais e não penais). Todo o cidadão é um potencial cliente. E todo o cidadão tem o direito a ser defendido por Advogado. Mas o Advogado não é o seu cliente. E os interesses deste, nomeadamente o interesse em ser defendido com toda a efectividade dentro dos limites da lei e da deontologia, não são interesses próprios do Advogado. São sim interesses do cliente, mas cuja defesa pelo Advogado ou Advogada interessa ao edifício de um Estado do direito.
A lei impõe a representação por Advogado, precisamente para garantir independência técnica e maior objectividade (que não significa, porém, escolher a solução jurídica mais “correcta” para o caso, mas aquela que, sendo legal e deontologicamente viável, é a mais adequada à defesa do interesse do cliente). É mesmo a Constituição que determina que o patrocínio forense é “elemento essencial à administração da justiça” e que a lei regula as imunidades necessárias ao exercício do mandato (artigo 208.º). E que prevê a assistência obrigatória por Advogado em processo penal nos casos previstos na lei (art. 32.º, n.º 3).
Mas para que essas imunidades sejam práticas e efectivas e não teóricas e ilusórias (na nomenclatura utilizada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos), há que as garanti-las, não só na lei, mas também culturalmente. Desde logo na comunidade, pela educação para os valores e princípios do Estado de direito. E na cultura judiciária, na postura de todos os intervenientes no sistema penal, começando desde logo por nós, Advogados, pautando-nos pela correcção e objectividade técnica, sem deixar de defender assertivamente os interesses dos clientes, mas também pelos outros intervenientes no sistema penal, para cuja postura a sociedade olha como exemplo. E passando finalmente pelos meios de comunicação social, a quem incumbe também o papel pedagógico sobre a função do Advogado e a sua essencialidade à garantia dos direitos de todos. Para que o próximo Dierk Wiersum não seja português.
Vânia Costa Ramos | Presidente do Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas
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