Violação do Segredo de Justiça. Novos caminhos para o seu combate.

Temos vindo a assistir, nos últimos tempos, a um recrudescimento da violação sistemática do Segredo de Justiça, nos chamados processos de criminalidade económico-financeira.

Em resposta a estas violações, e com grande surpresa, não temos tido contudo notícia da correspondente instauração de qualquer processo tendo em vista a investigação dos alegados ilícitos criminais praticados, por violação do art.º 371.º do Código Penal.

Sendo o Segredo de Justiça essencial nos processos que investigam a criminalidade económico-financeira, quer do lado da investigação, quer do lado dos arguidos, a sua violação terá de ser combatida.

Mas qual será a razão desta aparente impunidade?

No nosso entendimento, vários factores têm contribuído para este estado de coisas.

A redacção da norma incriminadora apenas pretende punir quem, de forma directa, tendo tido acesso ao documento, depoimento, escuta telefónica, ou qualquer outro elemento do processo em Segredo de Justiça, o divulgar ilegitimamente.

Ora, não são em muitos casos, os senhores jornalistas que publicam o conteúdo em Segredo de Justiça, aqueles que tiveram acesso directo ao mesmo.

Todavia, não tendo os senhores jornalistas que revelar as fontes da informação, através das quais tiveram acesso à peça/documento processual divulgado (não revelação com protecção Constitucional, legal, e corporativa – Código Deontológico dos Jornalistas), a instauração do procedimento criminal contra estes, em nada tem vindo a contribuir para a descoberta do responsável por esta violação, seja o responsável um terceiro, seja ele o próprio senhor jornalista.

Acresce que,  mesmo no caso de serem os senhores jornalistas a terem acesso directo ao processo, e à peça/documento processual em Segredo de Justiça, que depois divulgam, sempre poderão resguardar-se na confidencialidade das fontes, não divulgando a forma como acederam à informação que divulgaram, assim também inviabilizando a perseguição criminal, neste caso, contra si próprios.

Esta última situação tornada possível a partir do momento em que os Srs. Juízes de Instrução Criminal passaram aceitar, em aplicação do disposto na alínea e), do n.º 1, do art.º 68. do Código de Processo Penal, que os Srs. Jornalistas pudessem constituir-se Assistentes nos processos que envolvessem a suspeita da prática dos crimes ali previstos, e que na sua maioria integram a criminalidade económico-financeira, quando a rácio da norma não pretenderia ir tão longe.

Perante este quadro, como reagir.

Compreendendo as razões que levaram, e levam, à protecção constitucional da não revelação das fontes, nomeadamente, pela defesa de uma imprensa livre, essencial à manutenção e desenvolvimento de qualquer regime democrático, há que procurar uma solução que ponha termo, ou minore ao máximo, as recorrentes, e cada vez mais flagrantes violações do Segredo de Justiça.

Na verdade, o direito a uma informação livre não poderá nunca pôr em causa os direitos dos arguidos, que mais não são do que suspeitos da prática de um crime, mas que apenas deverão ser condenados se, a final, se provar a prática por estes dos crimes de que foram, ou serão acusados.

Ora, nem sempre a perseguição penal é a forma mais eficaz punir aqueles que praticam condutas censuráveis.

A Lei prevê, para a punição de alguns comportamentos, a instauração de processos contra-ordenacionais, cuja punição já não resulta na aplicação de uma pena de prisão, ou de multa penal, mas antes a aplicação de uma coima, ou seja, do pagamento de uma importância em dinheiro, sem os limites a que se encontram sujeitas as multas penais, que no caso da aplicação do disposto no art.º 371.º do Código Penal (Crime de Violação de Segredo de Justiça) poderá apenas chegar, no seu limite máximo, a € 120.000,00, por este motivo, com um muito maior poder dissuasivo.

A própria Lei da Imprensa prevê um regime contra-ordenacional para a punição de alguns ilícitos, pelo que não será descabida a criação de um regime contra-ordenacional para punir a violação do Segredo de Justiça, em diploma próprio, descriminalizando em simultâneo essa conduta.

A norma a criar puniria no pagamento de uma coima de valor significativo quem publicasse, ou trouxesse, por qualquer forma, ao conhecimento de terceiros, peça/documento processual em Segredo de Justiça (interno ou externo). Sendo que, no caso de se tratar de uma publicação ou relato efectuado por órgão de comunicação social, seriam responsabilizados como autores, quer aquela pessoa singular que publicasse ou relatasse a peça/documento em Segredo de Justiça, quer o órgão de comunicação social em questão, se bem que com graduações diversas, mais graves para a pessoa colectiva, como aliás vem sendo previsto nos regimes contra-ordenacionais já existentes.

Através deste regime, punir-se-ia a divulgação a terceiros da peça/documento que se encontrasse em Segredo de Justiça, sem que o jornalista, ou órgão de comunicação social tivesse de divulgar a fonte da informação.

O ilícito estaria praticado com a publicação/divulgação ou transmissão a terceiros da peça/documento processual em Segredo de Justiça!

Por outro lado, ocorrendo a maior parte destas violações ao Segredo de Justiça através de órgãos de comunicação social, a punição com uma coima de valor significativo, faria o accionista desse órgão de comunicação social pensar duas vezes em divulgar peça/documento processual em violação do segredo de Justiça, uma vez que essa divulgação, em violação da Lei, deixaria de compensar economicamente.

Deste modo, o ganho económico gerado com a divulgação ilícita de peça/documento em Segredo de Justiça, seria ultrapassado pelo valor da penalização resultante dessa divulgação, muito mais simples de demonstrar, o que com os actuais € 120.000,00 de pena de multa máxima por condenação na prática de crime de violação de Segredo de Justiça, e com a dificuldade de prova decorrente da não divulgação da fonte do conhecimento manifestamente não ocorre.

Solução esta que, simultaneamente, não beliscaria o direito inalienável dos senhores jornalistas na não divulgação das suas fontes.

Pensamos que este nosso contributo lançará, pelo menos, a discussão sobre um tema que nos deverá preocupar como advogados, e mais ainda como advogados penalistas, preocupação esta certamente extensível a todos os actores do Sistema de Justiça.

O caminho que está a ser trilhado com as crescentes, e cada vez mais ostensivas, violações do Segredo de Justiça em Processo Penal, representam uma deriva populista que retira o Processo Penal do seu local próprio, os Tribunais.

Teremos, assim, uma imprensa livre, mas responsável, e um jornalismo aberto à investigação, mas cumpridor dos limites da Lei.

Carlos de Almeida Lemos | Advogado – Fórum Penal

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