Não vai há muito tempo todos acordámos num sobressalto com mais uma “ameaça” de desjudicialização. Desta feita, na Justiça tributária.
O propósito do presente artigo não será esmiuçar os motivos que a desaconselham, pelo muito que já foi escrito a respeito.
Outrossim, propomo-nos ir à génese do problema.
Vamos, então, falar sobre o TTIP – The Transatlantic Trade and Investment Partnership?
O TTIP também poderia ser designado como a “importunação” que ninguém quer cogitar, sequer, que possa tornar-se real. Pelo que, a esparsas, alguém disserta sobre o TTIP, porém, a discussão, por razões que não vislumbramos, nem se densifica, nem se amplifica.
Na verdade, deveríamos estar todos aterrados com a privatização da Justiça que o TTIP significa, deveríamos estar elucidados sobre uma desjudicialização com tal amplitude, mas ao que parece é suposto que o assunto não seja discutido, quanto mais esgotado.
Tentar explicar em poucas linhas um retrocesso ao nível dos direitos fundamentais, deste teor, é tarefa mais do que ingrata. Sem exagero, poderemos consignar que a mesma é, quase, impossível, já que o TTIP significa muito mais do que privatizar a Justiça. Em bom rigor, daquilo que se trata é mesmo de aniquilar a Democracia.
Encurtando razões, podemos dizer, muito abreviadamente, que estamos perante uma Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, entre os Estados Unidos da América e a União Europeia. Só que as negociações, que há muito estão em curso, têm decorrido com cariz de segredo e sob um manto opaco de secretismo, motivo pelo qual ninguém tem acesso ao que está, realmente, a ser projectado.
Pelo menos este introito deveria convocar-nos para assumirmos a dianteira na reivindicação de um debate sério, vasto e elucidativo sobre os concretos pontos que estão a ser negociados. Mais que não seja porque a falta de clareza mutila gravemente um dos pilares inamovíveis de uma verdadeira democracia.
Ademais, tudo quanto as “as fugas de informação” vão possibilitando conhecer é extraordinariamente alarmante e pode indicar a derrocada – completa e inelutável – das sociedades democráticas, abertas e plurais, permitindo a hegemonia dos interesses puramente económicos, relegando para plano estritamente secundário as conquistas seculares das sociedades mais evoluídas, no que tange a matéria de direitos fundamentais.
Poderíamos dedicar aturadas páginas à descrição das múltiplas razões pelas quais o TIPP nos deve causar “calafrios”, mas conteremos a análise naquela perspectiva cuja utilidade avulta para a Advocacia, de forma muito específica (porquanto, em rigor, tudo aquilo que, ainda que ao de leve, belisca o núcleo essencial de matéria atinente a direitos, liberdades e garantias, interessa, sobremaneira, à Advocacia).
E se mencionássemos, aqui e agora, que, no que à Justiça importa, o TTIP significa Justiça Privada, no seu expoente máximo? Pois bem, do que parcamente se sabe sobre estas negociações, resulta que serão introduzias as arbitragens de conflitos entre grandes investidores e os Estados. Dito assim, com esta singeleza, não parece resultar motivo para grande alarde social. Mas não é bem o caso. Esta espécie de “tribunal de conflitos” serve para apreciar litígios emergentes de acções propostas por esses grandes investidores contra os Estados que, por via das suas políticas, possam fazer surgir “lucros cessantes” na esfera dos mesmos.
Dizer simplesmente isto é dizer tudo, quer em matéria de Justiça, quer em matéria de soberania, já que tal significa a subversão mais absoluta e despudorada de tudo o que deve ser: o poder económico passa a poder ajustar – de forma inaceitável – as políticas estaduais.
Não podemos, nesta, como noutras matérias, pugnar pela hipostasia da dualidade de princípios opostos, como sejam o bem e o mal, nem assumem as presentes linhas a pretensão de diabolizar ou tolher a iniciativa privada, nem, tão-pouco, constituir um desincentivo ao que quer que seja, nesse particular segmento. Só que, a pedra-de-toque, neste conspecto, é que o poder económico jamais pode ser um valor supremo e jamais pode a democracia transmutar-se em algo que agasalha entidades “supraestaduais” que determinam, em função de interesses meramente economicistas, os interesses, direitos e garantias dos cidadãos.
E se esta nova ordem mundial emergir cumpre, pois, questionar qual a motivação que nos impulsionará, a partir daí, a deslocar-nos a uma mesa de voto para eleger um Governo?
Ao escrevermos estas linhas, presumimos que os leitores sabem que já existem os ISDS (sigla utilizada para designar os Investor-State Dispute Settlements), no âmbito de outros acordos bilaterais, já vigentes, os quais permitem, pois, hodiernamente, que os grandes grupos económicos instaurem processos judiciais e demandem os Estados, estribados nos fundamentos anteditos. Nesta conformidade, foram já accionados alguns Estados, por estes tribunais arbitrais, constituídos ad hoc, em que são “juízes” grandes e poderosas sociedades de Advogados, que decidem, do mesmo passo, os interesses daqueles que são os seus clientes (ou seja: os tais grandes grupos económicos).
Não logramos, ainda, aceder à base de dados onde estão publicadas tais decisões, para percebermos a tendência da “jurisprudência” dali dimanada.
Assim, podemos concluir que existe um reduto onde a justiça privada impera, sendo a mesma obscura e não passando de uma espécie de “alfaiataria judicial”, onde se vão produzindo decisões, que seriam mais correctamente epitetadas de “fatos à medida”.
O TTIP importa esta realidade para a Justiça e, ainda que não possuamos – como quase ninguém – informação de monta sobre aquilo que verdadeiramente está a ser negociado, de forma furtiva, com a complacência dos habituais silêncios cúmplices, creio que o que aqui se deixou expresso já nos deixa, a todos, apavorados.
E, agora, ainda vão conseguir virar estas páginas, encarar a silly season, dormir tranquilos e permanecer de consciência serena?
Vão arquivar e fazer cessar, oportunamente, este assunto para apenas se lembrarem dele quando o sistema de Justiça permitir a condenação do Governo do vosso Estado no pagamento de uma avultada indemnização a um grande grupo económico, por perda de lucros, porque esse mesmo Estado decidiu implementar uma política de salários mais elevados, para que os cidadãos pudessem ter mais rendimentos ou de redução de carga fiscal, por exemplo, indemnização essa arbitrada por preponderantes sociedades de Advogados, travestidas de “Juízes” (imparciais), na defesa dos interesses dos seus Constituintes (ou seja, em ostensivo conflito de interesses), ditando, assim, a insolvência do vosso Estado?
Ou já estão com medo da desjudicialização? Com muito medo?
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