As autoridades de supervisão – designadamente o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários – exercem o poder sancionatório através do processo contra-ordenacional, podendo aplicar pesadas coimas e sanções acessórias.
Perante indícios da prática de uma infração, as autoridades de supervisão devem proceder a uma investigação, instruindo o processo com os elementos relevantes. Concluída a investigação, e concluindo que foi praticada uma infração, as autoridades de supervisão devem notificar os supostos autores ou cúmplices da infração (que são, ou passam a ser, arguidos no processo) das infrações que lhes são imputadas para que estes, querendo, possam sobre ela se pronunciar e apresentar defesa. O direito de audiência e defesa em processo de contra-ordenação é, alias, um direito constitucionalmente consagrado no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição.
Até aqui, são muitas as semelhanças entre o papel das autoridades de supervisão no processo contra-ordenacional e o papel do Ministério Publico no processo crime: ambos investigam e ambos acusam. E, à semelhança do Ministério Público, também as autoridades de supervisão dispõem de amplos poderes na obtenção de prova, podendo fazer buscas e apreensões. De tal forma a actividade investigatória das autoridades de supervisão se aproxima da levada a cabo pelo Ministério Público que, actualmente, a CMVM tem até poderes para investigar crimes conta o mercado. Sob o epíteto de “averiguações preliminares”, a CMVM pode proceder às diligências necessárias para apurar a possível existência da notícia de um crime contra o mercado de valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros (artigo 383.º n.º 2 do Código dos Valores Mobiliários).
Sucede que, deduzida a acusação e apresentada a defesa pelos arguidos, há uma diferença abissal entre o processo de contra-ordenação e o processo crime: é que no processo crime quem decide o caso – condenando ou absolvendo os arguidos da acusação do Ministério Público – é um juiz (ou mesmo três juízes, consoante o crime), ou seja, um terceiro independente e imparcial; no processo de contra-ordenação quem decide o caso – condenando ou absolvendo os arguidos da acusação da autoridade de supervisão – é… a própria autoridade de supervisão.
Quando quem julga é quem acusa, dificilmente se pode esperar uma verdadeira isenção e imparcialidade.
Acresce que, no caso de processos complexos, os instrutores não raras as vezes despendem muito tempo e esforço numa acusação, muitas vezes em sacrifício da sua vida pessoal, e esse investimento emocional dificilmente lhes permite a frieza necessária para uma apreciação desapaixonada do caso. E muito menos quererão dar o braço a torcer e admitir quando estão profundamente errados: propor uma absolvição é facilmente entendido, pelos próprios e por terceiros, como a prova de um mau trabalho de investigação e instrução.
Em alguns casos, o legislador ainda se preocupou com insidiosa confusão entre as diferentes funções de investigador, acusador e julgador. Foram também preocupações dessa natureza que tiveram origem na já extinta Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade ou, por exemplo, na regra estabelecida na Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais, segundo a qual o autuante ou participante não pode exercer funções instrutórias no mesmo processo (artigo 48.º).
De resto, e fora algumas honrosas excepções, há muito que se mantém a regra de que as autoridades de supervisão investigam, acusam e julgam.
Esta promiscuidade de papéis conduziu, em alguns casos, a uma prática absolutamente perversa: a acusação deixou de ser o resultado de uma investigação para se tornar apenas um preliminar da condenação: o processo de contra-ordenação só nasce oficialmente quando a autoridade administrativa já decidiu condenar, e a acusação não é mais do que uma mera formalidade.
Assim, as autoridades de supervisão não se vêm compelidas a constituir arguidos e depois a não acusá-los, ou a acusá-lo e depois absolvê-los. Isso – sendo embora aquilo que lhes competia – sujeitá-las-ia à crítica da injusta constituição de arguido ou de uma injusta acusação.
Por outro lado, e porque a acusação passou a mera formalidade, é cada vez mais comum deduzir a acusação sem sequer ouvir previamente os arguidos. Evidentemente, e fora casos excepcionais, um trabalho de investigação sério implica que, antes de ser deduzida a acusação, se oiçam as pessoas suspeitas. Mas se a decisão de condenação já está tomada, e depende apenas da própria autoridade de supervisão, para quê perder tempo a ouvir os futuros arguidos? Porque não apaziguar de imediato o clamor por sangue da opinião pública? É muito mais célere acusá-los logo e aproveitar, já agora, para lhes pedir elementos sobre a sua situação económica para utilização na fundamentação da medida da coima.
Para além de tudo isto, nos últimos tempos assistiu-se a um factor adicional que perverteu ainda mais o sistema instituído: as autoridades de supervisão são elas próprias acusadas de terem violado os seus deveres como supervisor. Basta recordar que, logo em 2008, o então Presidente da Comissão Europeia dizia publicamente que, na actual crise financeira, “aquilo que falhou nitidamente foram as autoridades públicas de supervisão”. E ainda muito recentemente, na Comissão Parlamentar de Inquérito ao Banif, o Ministro das Finanças pedia aos deputados que apurassem a existência de “falhas graves de supervisão”.
Se era difícil acreditar na real imparcialidade de quem simultaneamente acusa e julga, o que dizer quando a condenação pode ser, para o julgador, a sua própria absolvição?
Nuno Salazar Casanova | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas
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