“Morte à morte! Guerra à guerra! Ódio ao ódio! Viva a vida!”

Dr. Alfredo Castanheira Neves - Presidente da CDHQSAN

Foi assim que o escritor Victor Hugo felicitou Portugal pela decisão histórica de abolir a pena de morte. São palavras tão verdadeiras a 2 de Julho de 1867, quando as escreveu numa carta ao Diário de Notícias, como o são hoje.

Até serão mais verdadeiras hoje do que eram na altura, tendo em conta o Mundo hodierno em que vivemos, onde os perigos e ameaças ao axioma do respeito e dignidade do ser humano, condenado ou não, se desdobram a cada dia.

Mas será que hoje vivemos tempos assim tão diferentes de 1764, quando o Marquês de Beccaria, de modo inédito, no seu clássico “Dei delitti e delle pene”, questionou a necessidade e a utilidade da pena de morte como expoente máximo da prevenção geral e especial?

Nessa altura, como hoje, as guerras entre dois modos diferentes de ver o Mundo eram endémicas. Mais ainda, tendo em conta a colonização. Nessa altura, como hoje, os massacres de cidadãos inocentes apenas por serem de determinada raça ou etnia aconteciam regularmente. E, nessa altura, como hoje, países tentam anexar partes do território de outros países.

No meio deste mundo em tudo semelhante ao nosso, em tudo global em relação ao nosso, faltando-lhe apenas a vivência tecnológica que nos interliga ao segundo, Beccaria teve a ousadez de reclamar para o Direito aquilo que ninguém antes dele tinha posto em causa: que não compete ao Direito tirar aquilo que a Natureza – e não o Direito – deu.

Jeremy Bentham, em 1755, leva esta ideia humanista mais longe, considerando, até, que, com a aplicação da pena de morte, se torna moralmente aceitável o perjúrio, por princípios absolutos de humanidade. Transferindo para a testemunha o ónus decisor da aplicação da pena de morte, quem, de entre os que testemunham, questiona Bentham, quereria ficar com a pena perpétua de ter condenado outro igual a si à morte?

Em Portugal, é a António Ribeiro dos Santos, no seu “Discurso sobre a pena de morte e reflexões sobre alguns crimes”, datado de 1815, que se concretiza, pela primeira vez no nosso País, a doutrina abolicionista. Seguindo Beccaria mas cunhando, de forma inequívoca, a sua própria visão da desnecessidade da pena de morte, Ribeiro dos Santos renega princípios jurídicos que até aí pareciam inabaláveis.

Por um lado, a incorrigibilidade do Homem, se existir, não se resolve com a incorrigibilidade da morte.

Por outro lado, escreve Ribeiro dos Santos, “no santuário da Lei não penetra o espírito da cólera, de ressentimento e de ódio, nem estas paixões vingativas entrarão na balança da justiça”.

Mais, refere Ribeiro dos Santos, que o conhecimento da punição não pode nunca ser fundamento para justificar a pena de morte, porque implicaria que, ao cometer o crime, o Homem estivesse a fazer cessão consciente da sua vida. Acompanhamos Ribeiro dos Santos em toda a razoabilidade do seu pensamento quando deixa a ideia de que um crime não é, nem nunca poderá ser entendido como um suicídio a prazo, querido e pensado nesse sentido por quem comete o crime.

Por último, Ribeiro dos Santos diz, e bem, que não se torna inimigo da sociedade o criminoso. E que, por não ser inimigo da sociedade, não se pode considerar que o indivíduo declara guerra à sociedade. E com esta declaração, legitima-se a pena de morte como sendo em estado de guerra.

Assim, se é certo que a morte é uma inevitável e lamentável consequência do conflito armado, não se está em guerra com um criminoso preso e apresentado aos Tribunais, tendo cedido as armas, estando nas mãos do Direito e “se reduz à impotência de poder continuar a fazer-nos mal”. Assim, escreve Ribeiro dos Santos, “descarregar sobre ele a vingança violenta da espada, já quando a siua vida nos não é nociva, será acção não só fraca, mas cruel e injusta, quanto mais, desnecessária”.

Todos estes argumentos racionais e inovadores de Ribeiro dos Santos foram a pedra basilar para que Portugal fizesse aquilo que nenhum País fizera: abolir a pena de morte para todo e qualquer crime. Mas não fosse a vontade de todo um povo, acabado de sair de uma guerra civil, e em estado de necessidade de uma paz social duradoura e distante da morte, e as ideias de Ribeiro dos Santos permaneceriam como mais um artigo no Jornal de Coimbra do ano de 1815.

É o povo português que, num consenso invulgar para a altura em relação a este tema, quase que obriga o Direito a seguir este caminho. Cautelosamente, no entanto, a Comissão que elaborou o Código Penal de 1852, composta por Manuel Duarte Leitão, José Leite e Vasconcellos e José Maria Silveira da Motta, considera, no preâmbulo, que “pensa não ter chegado ainda o tempo em que a pena de morte possa ser de todo eliminada das nossas leis penais”, acrescentando, no entanto, que “somente a admite nos muitos raros casos em que a sua justiça, e indispensável necessidade não pode ser razoavelmente contestada”.

No entanto, o tempo chegara e nada travaria o movimento abolicionista que se instalara consensualmente na sociedade portuguesa e nos seus mais distintos jurisconsultos. Assim, no Verão de 1867, Barjona de Freitas, a pretexto da Reforma das Prisões, leva ao Parlamento aquilo que se consubstanciará num dos maiores contributos do povo português à Humanidade: a abolição total da pena de morte para qualquer crime que seja praticado.

A proposta foi aprovada por 92 votos a favor, 2 votos contra e 2 abstenções, com os votos contra dos deputados Cunha Salgado e Belchior Garcez.

Num artigo no Diário de Lisboa, nesse ano de 1867, Barjona de Freitas defende a Lei que aboliu a pena de morte:

A pena que paga o sangue com o sangue, que mata mas não corrige, que vinga mas não melhora, e que usurpando a Deus as prerrogativas da vida e fechando a porta ao arrependimento, apaga do coração do condenado toda a esperança de redenção, e opõe à falibilidade da justiça humana as trevas duma punição irreparável”.

Seguiu-se, em 1884, a abolição da prisão perpétua para todos os crimes, clamando o movimento abolicionista mais uma vitória para a razão e para a humanidade que devem pautar as penas decididas pelas Leis. E Portugal entra numa nova era de Justiça mais justa e mais humana, onde a vida humana é inviolável, seja qual for a razão. Proclamando que não pode nunca a Justiça fazer justiça com novo e irretratável crime.

E, assim, cumpre-se Victor Hugo, gritando Portugal para o Mundo, em toda a sua plenitude, “Morte à morte!” e “Vida a vida!”.

No entanto, e apesar dos tempos não serem tão diferentes hoje do que eram antes, no que toca à continuada barbárie e desconsideração do valor vida, a pena de morte enfrenta, hoje, desafios que podem causar graves distúrbios ao, até aqui, abolicionsimo enquanto avanço civilizacional.

As guerras deixaram o seu âmbito clássico de exército contra exército para ficarem desprovidas de rosto. Drones, conduzidos à distância, sobrevoam países e com um único míssil matam centenas de pessoas. Bombas artesanais lançam o caos no meio de uma celebração de massas, como uma maratona ou um jogo de futebol. Aviões comerciais são desviados para tornar terra plana onde antes estavam imponentes edifícios, levando consigo todos aqueles que nelas trabalhavam, bem como aqueles que lá foram para as socorrer. Prisões fora da jurisdição do Direito e da Justiça. Penas aplicadas sem ser por um Tribunal. Homicídios autorizados por decreto. Uma só arma nas mãos de uma só pessoa mata dezenas de crianças em escolas.

O populismo e a demagogia política, tão presentes hoje no espaço europeu, vivem disto. São espaço de eleição dos temores dos cidadãos, incutindo-lhes medo e desinformação. Religiões inteiras são consideradas inimigas, modos de vida são colocados em confronto, Ocidente e Oriente pensam, cada um, que têm a solução para o Mundo inteiro. E com isso, esbate-se a cada dia, a ideia do cidadão comum daquilo que é certo daquilo que é errado.

É nossa mais pura convicção de que o caminho até aqui trilhado não é errado. É o certo. Que tudo o que se passa no Mundo não pode servir de desculpa para voltarmos atrás. Que o ódio se combate com justiça justa. Que a demagogia se combate com informação. Que o populismo se combate com cultura e educação. Que o medo se combate com a firme defesa dos avanços civilizacionais que até aqui conseguimos.

Cedê-los é deixar que sejam outros a definir quem somos, como vivemos e como pensamos.

Se Beccaria, Bentham e Ribeiro dos Santos tinham razão há séculos atrás, o que mudou na sua racionalidade para que tudo mude? A Justiça, hoje, tem de ser vingativa para valer? O crime de homicídio, hoje, é um suicídio a prazo do homicida? O Direito está, hoje, em guerra com quem o viole? O Mundo é mais seguro se matarmos mais depressa aqueles que nos querem matar? Ou, paradoxalmente, por cada morte, se levantam dez prontos para ocupar o lugar do que caiu?

Que Justiça teríamos se a morte fosse a resposta? Que Justiça poderiam os outros esperar do exemplo civilizacional que a retirou? Que diremos de nós aos outros se dissermos que estivemos errados estes últimos 150 anos? Estamos errados? Não, não estamos. Já estivémos e corrigimos o nosso caminho há 150 anos. Retroceder é, como dizia Ribeiro dos Santos, dizer que a Justiça não é movida pelo interesse público mas pelo ódio pessoal. Que punir não é buscar um exemplo para o futuro mas uma vingança para o passado.

Por tudo isto, se mantém a justeza e a nobreza do acto do povo português, expresso em Lei, em 1867. Por tudo isto, os valores do respeito pela inviolabilidade da vida humana permanecem hoje tão actuais como o eram há 150 anos.

Mais do que nunca, esse respeito pela vida humana tem de ter exemplos éticos e morais, que só podem ser dados por decisões justas e por Leis que tratem os homens com o respeito que merecem.

Mais do que nunca, tem de haver alguém que grite “morte à morte” e “vida à vida”.

Alfredo Castanheira Neves, Presidente da CDHQSAN

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