A primavera acabou, o verão avança, a silly season entra-nos pela casa dentro e o número de temas que nos deixam desconfortáveis como cidadãos e nos preocupam não param de aumentar. Desde o horrível incêndio de Pedrógão Grande e a toda informação, desinformação e contrainformação que temos assistido a respeito desta tragédia, ao inenarrável “roubo” de um paiol, passando pelos sempre quentes temas da Justiça portuguesa, são múltiplos os acontecimentos que colocam o Estado Português, os órgãos de soberania e os principais organismos do Estado sob a mira de um inevitável desconforto e preocupação.
No meio de tudo isto, temos ao longo dos últimos meses acompanhado uma negociação entre o Ministério da Justiça e, entre outros, os representantes dos juízes portugueses a respeito do estatuto dos magistrados judiciais que, entre avanços e recuos, terá sido decretada “sem efeito” por “carta pública” enviada pela Associação Sindical dos Juízes ao Primeiro-Ministro. No horizonte desta negociação os representantes dos juízes portugueses colocaram a realização de uma greve, primeiro agendada para agosto e depois adiada para outubro, como reduto final em caso de insucesso negocial.
Esta ameaça colocada na agenda pública pelos representantes dos juízes cria desde logo muitas reservas no plano político.
É uma iniciativa totalmente contraditória com o ambiente gerado em setembro de 2016 com o repto lançado pelo Presidente da República no sentido de os “Agentes da Justiça” alcançarem um “pacto para a justiça”. Do entusiasmo vivido em setembro de 2016 no sector à ameaça de realização de uma greve para começo de conversa numa negociação de um estatuto profissional entre órgãos de soberania, diria que esperar pior seria difícil.
Contudo, o menor dos problemas que aqui se coloca é o do plano político, ainda que a iniciativa em causa tivesse o alto patrocínio do Presidente da República. Sem dúvida que a maior perplexidade nesta iniciativa – ainda que a mesma não seja inédita, pois já se realizaram duas greves dos juízes em Portugal – se prende com a circunstância de os tribunais no nosso quadro constitucional serem órgãos de soberania.
Como sabemos, os tribunais são, a par do Presidente da República, da Assembleia da República e do Governo, constitucionalmente consagrados como “órgãos de soberania”. Por isto mesmo, como explica de forma lapidar Jorge Miranda “os juízes não são empregados do Estado. Eles são – como o Presidente da República, os deputados e os ministros – o Estado a agir” (jornal Público, 09.06.2017). São, repita-se, “o Estado a agir”, isto é o Estado a realizar-se, o Estado a cumprir a sua função politica, social e económica perante a comunidade sobre a qual se ergue e na qual reside a sua soberania.
É, assim, especialmente por isto, que a ameaça de greve dos juízes é mais um episódio que nos deve deixar desconfortáveis e preocupados como cidadãos e não pode deixar de nos fazer refletir.
Em primeiro lugar, a greve dos juízes ao consubstanciar objetivamente a assunção de uma efetiva subordinação do poder judicial ao poder político e executivo traduz-se numa lamentável confusão que faz perigar princípios basilares do Estado de Direito Democrático como é a separação e interdependência de poderes. Não cabe aos titulares dos órgãos de soberania desarrumar o arranjo institucional que o legislador constitucional estabeleceu como normas fundamentais da República Portuguesa.
Em segundo lugar, porque este tipo de iniciativas tem um impacto na própria ideia de Estado que enquanto comunidade devemos assimilar e partilhar. Se é no povo que reside a soberania, como nos diz a Constituição da República Portuguesa, é no interesse dos cidadãos que os órgãos de soberania devem em primeira linha agir.
Quando titulares de um órgão de soberania permitem que esta se confunda com subordinação a outros poderes e se esquecem que eles próprios são a representação soberana que o Estado tem perante os cidadãos em cada momento, não estão a pôr em primeiro lugar os interesses destes.
É fundamental para a boa administração da justiça e consequentemente indispensável à nossa vida em sociedade que os cidadãos percebam ideias tão simples como a razão pela qual há outros cidadãos a quem é dado o poder de tomar decisões sobre as suas vidas, sobre os litígios que têm no seu percurso, sobre os direitos que pretendem revindicar e proteger. Mas para isso é necessário, em primeira linha, que aqueles a quem é atribuído esse poder soberano interiorizem que essa qualidade é axiologicamente incompatível com a assunção de posições de subordinação perante outros órgãos do Estado, de funcionalização acentuada ou de expectativas laborais comuns aos demais.
Por mais que possa dificultar as negociações do estatuto dos magistrados e por mais difícil que se possa tornar o caminho, a responsabilidade de quem exerce funções de soberania exige sempre que os interesses particulares não se sobreponham aos coletivos.
Espero que os banhos típicos do verão que está à porta e a diminuição da temperatura até outubro (nova data anunciada para a greve dos juízes) tragam uma maior clarividência que permita que todos percebam que a soberania não faz greve. Não faz greve nem vai de férias, como todos os que leem este artigo, a quem desejo um excelente período de descanso.
Subscreva a newsletter e receba os principais destaques sobre Direito e Advocacia.
[mailpoet_form id="1"]