Comentário às notas para a comunicação social, difundidas ao abrigo do artigo 86.º, n.º 13, alínea b), do Código de Processo Penal
A 4 de janeiro de 2013, a Procuradora-Geral da República “determinou a realização de uma auditoria aos inquéritos-crime que nos últimos dois anos tenham estado sujeitos a segredo de justiça e sido objeto de notícias sobre os respetivos atos ou conteúdo, passíveis de constituir efetiva violação daquele segredo”. Com essa auditoria, visou-se, entre o mais, “propor, a partir do apurado, medidas práticas tendentes à sua eliminação ou significativa diminuição de violações do segredo de justiça e, também, à mais fácil investigação das que venham a ocorrer de futuro”. Volvido sensivelmente um ano – a 10 de janeiro de 2014 – foi publicado o relatório dessa mesma auditoria.
Dentro das diversas propostas que o mesmo oferece em face das conclusões a que chega, encontra-se a “criação de um grupo, agência ou outro modelo organizacional, integrado por profissionais da comunicação, sob a direção de um magistrado com especiais competências comunicacionais e profissionais, na dependência da PGR, que assegure a instituição e execução da política comunicacional delineada, cabendo-lhe” (…), entre o mais, “Antecipar as informações pertinentes e possíveis sobre a instauração e desenvolvimento dos casos com maior potencial de repercussão social e política sujeitos ou não a SJUS; Atuar imediatamente no sentido de corrigir o que for distorcido e de sinalizar os casos de efetiva violação do segredo, promovendo a instauração dos competentes IC para a sua investigação nos termos sobreditos”.
Enquanto não for realizada uma auditoria semelhante a esta, será porventura desadequado ponderarmos sobre a eficácia do que ali se concluiu e se propôs. Não é isso, portanto, que pretendemos aqui realizar. O que aqui pretendemos é, em diferente plano, questionar o modelo comunicacional que a PGR tem seguido desde a publicação daquele relatório e da adequação (e até legalidade) das notas para a comunicação social que vêm sendo difundidas pela mesma PGR. E sobre estas “notas”, reservaremos a nossa atenção àquelas que são criadas em nome do previsto no artigo 86.º, n.º 13, alínea b), do CPP, pois que são as que se relacionam diretamente com os processos sujeitos a segredo de justiça.
De acordo com esta norma, “O segredo de justiça não impede a prestação de esclarecimentos públicos pela autoridade judiciária, quando forem necessários ao restabelecimento da verdade e não prejudicarem a investigação: […] b) Para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública”. Sublinhemos o contexto que o legislador definiu como legitimador da prestação de esclarecimentos públicos sobre processos sujeitos a segredo: “quando forem necessários ao restabelecimento da verdade”.
Ora, de acordo com os dados disponibilizados na página da PGR (http://www.ministeriopublico.pt/comunicados), o recurso a estes esclarecimentos vem aumentando consideravelmente, sobretudo quando comparamos, em quantidade, os publicados no tempo do mandato da atual Procuradora-Geral da República com os publicados no mandato do seu antecessor.
Com efeito, entre outubro de 2006 e outubro de 2012 foram prestados 11 esclarecimentos ao abrigo da já referida norma do CPP; por seu turno, entre novembro de 2012 e fevereiro de 2017 o número total de esclarecimentos é quase nove vezes superior, num total de 94 esclarecimentos prestados ao abrigo do artigo 86.º do CPP.
Outra diferença substancial – mas patente na forma – que é encontrada num período e noutro, é que no mandato do anterior Procurador-Geral, esses esclarecimentos, via de regra, aludiam à tal necessidade de restabelecimento da verdade (e seu contexto concreto) – que, do ponto de vista legal, legitima a respetiva prestação – ao passo que, no atual mandato, e na quase totalidade dos 94 esclarecimentos prestados, são as notas para a comunicação social liminarmente iniciadas da seguinte forma: “Ao abrigo do disposto no art. 86.º, n.º 13, al. b) do Código de Processo Penal, a Procuradoria-Geral da República torna público o seguinte”. Ou seja, o contexto que impõe o restabelecimento da verdade não é sequer indicado, sem que se expresse o porquê do esclarecimento.
Será esta forma de atuar – e de comunicar – do Ministério Público a melhor forma de exercer a ação penal e defender a legalidade democrática? Estará, assim, o segredo de justiça mais protegido, e as violações ao mesmo, sujeitas a um melhor controlo? Será o restabelecimento da verdade o objetivo realmente prosseguido? A nosso ver, a resposta a todas questões é, inequivocamente, negativa.
Na verdade, e considerando que a ação penal exercida pelo Ministério Público na fase de inquérito visa, antes de mais, investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação, não se depreende em que medida a prestação de esclarecimentos públicos sobre processos em segredo de justiça poderá ser perspetivada como um meio para esse fim. E se são os mesmos prestados sem que se diga – ou sequer se percecione – que verdade há a repor, violam, ainda que inadvertidamente, a lei.
Pensar-se que o segredo de justiça fica melhor tutelado é, por outro lado, esquizofrénico. Sendo uma ferramenta excecional dentro de um regime já ele também excecional, a banalização da sua utilização legitimará que se questione a própria necessidade do segredo. E surgindo antes ou simultaneamente ao que os órgãos de comunicação social por si só relatam, sem que se apresente o seu porquê – não basta aludir-se à norma legal – o que é (legalmente falando) suposto ser um remendo concreto de uma inverdade, potenciará a profusão informacional e mediática de processos que, estando em segredo, reclamam uma reserva e recato maiores.
É por estas razões que recusamos aceitar que o Ministério Público venha realmente prosseguindo restabelecer verdades, sobretudo quando – e isso é público e notório – a quase totalidade desses esclarecimentos ocorra nos concretos processos em que ocorre: os mais mediáticos.
Se há uma busca domiciliária, ou se ocorre a detenção de uma figura pública, e a comunicação social, no exercício das suas funções, informar sobre essas realidades sem que falte à verdade ou a deturpe, não há restabelecimento da verdade que reclame qualquer esclarecimento.
Pior que isso é se o esclarecimento surgir até antes de qualquer notícia publicada, o que também acontece (quando, manifestamente, não poderia acontecer). Estabelecendo uma verdade, o Ministério Público propaga através da comunicação social aquilo que o segredo de justiça não quis revelar. Sem que o esclarecimento fosse pedido. Sem que a verdade tivesse sido previamente colocada em causa. Trazendo a intranquilidade pública que o segredo de justiça havia (até então) prevenido.
Quando o Ministério Público desenvolve (e executa) uma estratégia comunicacional como a que vem realizando nos últimos anos – com 4 “esclarecimentos” em 2013, 11 em 2014, 27 em 2015, 40 em 2016 e 8 em apenas dois meses de 2017 – sem que qualquer necessidade de restabelecimento da verdade exista de facto, usurpa uma função que, do ponto de vista legal, nunca lhe foi acometida. Age, assim, enquanto “agência noticiosa” para as questões da investigação criminal. Tal atuação terá, seguramente, o mérito de assegurar que a informação veiculada corresponde à verdade (do processo). Periga contudo – e talvez não pouco – com outros valores (igualmente) dignos de ponderação: é um fator de manipulação da comunicação social, apresentando exclusivamente um dos pratos da balança e, sem dúvida alguma, potencia (e exponencia) as “condenações públicas” que os órgãos de comunicação social já alcançavam sem a intervenção e iniciativa do Estado.
Em entrevista ao jornal Público no início de 2015, e referindo-se à violação do segredo de justiça e ao seu combate, Joana Marques Vidal referiu: “Espero chegar ao final do mandato mais contente do que estou agora”.
Da nossa parte, o desejo é o mesmo. E que as quase 100 vezes que processos sujeitos ao segredo de justiça viram esse mesmo segredo pontualmente cessado pelo órgão (ou “agência”?) que dirige a não deixem menos satisfeita.
Rui Costa Pereira | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas
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