Um dos maiores desafios do atual Estado de Direito e da mediatização da Justiça é saber até onde vai o Direito à Informação, o dever público de divulgar factos constantes de processos, nomeadamente nos denominados “processos mediáticos”, cujo interesse público é indesmentível, bem como aliviar o estigma da palavra “arguido” que encerra um pré-juízo de culpabilidade social impossível de afastar.
A discussão é antiga, longa e absolutamente inconclusiva.
Por um lado, existe um indesmentível interesse público de saber se certas personalidades, atenta a sua exposição mediática, praticaram algum ilícito penalmente censurável.
Por outro lado, existe até um dever de divulgar tais factos, mesmo que não consubstanciem ilícitos criminais, pois que a verdade deve ser o fim último da Justiça.
Mas tudo isto é feito à custa da imagem social, do bom nome, da honra e da reputação que é direito de todos os cidadãos.
Não se conhece um único caso em que uma figura pública, constituída arguida num processo-crime, tenha logrado afastar esse estigma que a palavra “arguido” (criada, até, para afastar o antigo estigma que encerrava a palavra “réu” que não é utilizada em processos crime) contém. Pensamos, desde logo, no processo n.º 77/05.2JASTB e no processo n.º 1517/05.6JFLSB.
Tem sido exceção a constituição e divulgação de alguma figura pública como arguido no final de uma investigação, em contraponto com o que acontece em alguns sistemas jurídicos em que tal constituição apenas ocorre na fase final de um inquérito, sendo o arguido confrontado com todos os dados recolhidos e, até, com uma proposta de acusação, dando possibilidade (e algum tempo) para que o mesmo apresente os argumentos que poderão evitar tal despacho e estigma que daí advém.
O nosso sistema, tal como está construído, patrocina (e não afasta) tal modus operandi mas, por diversas razões (também compreensíveis), não é aplicado. Compreende-se que assim seja pois são investigações demoradas, complexas, com elevado número de intervenientes e com a necessidade de apuradas análises documentais.
Surge, então, a questão: valerá a pena? Valerá a pena decretar a “morte social ” de uma figura pública com a notícia da sua constituição como arguido, independentemente de, a final, se concluir pela falta de responsabilidade penal?
A resposta é tendenciosa mediante o seu emissor. Como Advogado, a resposta é obviamente não. Nada justifica a constituição prematura de alguém como arguido sem que toda a prova esteja recolhida (não olvidando o facto de ao arguido serem facultados mecanismos de defesa e reação). O Advogado não sente na pele, como o sente o visado, os dissabores de publicamente estar condenado a ser considerado eternamente um criminoso, mas lida diariamente com o sofrimento, a angústia e muitas vezes com a revolta do arguido.
Certamente que o investigador terá uma resposta diametralmente oposta, arguindo as dificuldades na investigação, de obter provas, indícios, documentos, testemunhas que corroborem a convicção formada que subjaz à constituição de alguém como arguido. Tecnicamente não se deve censurar tal postura ou convicção, mas muitas vezes ignora-se o lado humano e o facto da presunção de inocência ser vista como uma mera decorrência processual, sem qualquer apego social.
Entendemos que a constituição de alguém como arguido não deveria ocorrer sem antes estarem recolhidos todos os elementos suficientes que permitam, desde logo, a dedução de uma acusação.
O tempo é inimigo da Justiça e também da presunção de inocência.
Numa altura em que se discute, novamente, a natureza pública ou secreta da investigação em processo crime, onde por um lado quem investiga defende o total secretismo dos atos investigatórios até ser proferido um despacho final de inquérito (evitando, principalmente, a possibilidade de os visados poderem impedir ou dificultar a aquisição de prova) e, por outro lado, se defende que a Justiça, sendo pública, justifica a total abertura e conhecimento das diligências que estão a ser realizadas, quer pelos visados quer pelos cidadãos, para serem “auditadas” publicamente, uma conclusão parece certa: à semelhança de outros ordenamentos jurídicos, apenas se deveria permitir a constituição de alguém como arguido quando as diligências tendentes à sua eventual responsabilização já se encontram finalizadas (ou praticamente finalizadas).
O indesmentível estigma do “arguido”, que de presunção de inocência, socialmente, nada tem, é demasiado perverso e absolutamente irreversível, apesar de não descuidarmos que em termos processuais e técnicos a constituição e os poderes que advêm da qualidade de arguido não são de somenos importância.
Cabe aos vários intervenientes processuais, sem exceção, mudar o paradigma, dignificar a Justiça e exercer os seus poderes, deveres e direitos de forma transparente, fazendo crer que Justiça e Direito são duas margens do mesmo rio e que entre essas margens há (muitas) pontes. Afastar a ideia de que as duas margens nunca se encontram e demonstrar a Verdade como ela é e não como querem que seja, seja ela a verdade do arguido ou a da investigação, pois é daí que advém a dignidade da pessoa humana que se defende no primeiro artigo da nossa Lei Fundamental.
João Barroso Neto | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas
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