“O sucesso reside em três coisas: decisão, justiça e tolerância.”
– Johann Goethe
Mergulhei, há dias, numa cadeira de cinema para enfrentar o perturbador e intenso filme francês “La Tête Haute” (cuja tradução para português é “De Cabeça Erguida”). O filme foi seleccionado para abrir o Festival de Cannes, em 2015, e a minha curiosidade, pelo que reputei de inusitado em face do tipo de longa-metragem de que se tratava, que já era imensa, estava, pois, enfatizada pelo facto de lidar, diariamente, com o sistema de Justiça. Pouco tempo decorreu para que eu pudesse compreender a razão do meu sobressalto.
Da tela vi surgir um sistema de Justiça humanizado, desde logo, por colocar em destaque a angústia, as decepções e as conquistas galvanizadoras, quotidianas, de todos os que, nele envolvidos, tentavam desempenhar, denodadamente, as suas funções. Como pude compreender personagens, para mim, tão reais!
A Justiça aparece no filme, de facto, “de cabeça erguida”, perante o grande público.
Ficamos, por largos minutos, frente a frente com uma incontornável face humana que é muito raramente percepcionável, na administração da Justiça, mas que o filme tem o mérito de colocar em evidência.
Deixando de parte um certo auto-engrandecimento, sub-reptício, com um cariz, sob a minha perspectiva, um tanto ou quanto, propagandístico da Justiça francesa, que nesta sede não releva, mas que por razões de honestidade intelectual não posso deixar de assinalar, na verdade o argumento é, deveras, interessante e fez-me submergir num momento profundamente meditativo.
A “história” conta-se facilmente. Malony, desde os seis anos de idade, é negligenciado por sua mãe, cuja falta de maturidade fica bem patente desde as primeiras cenas do filme, pelo que começa a ser acompanhado por uma Juíza de Menores, Florence Baque (papel magistralmente desempenhado por Catherine Deneuve, o que também não surpreende), acompanhamento esse que perdurará por dez anos.
Logo numa das primeiras cenas é a própria mãe de Malony que afirma “criei um monstro (!)“, fazendo a câmara uma transição rápida para a face repleta de candura da criança. Fixei bem aquele rosto cândido e (quase) inocente do pequeno Malony para o contrapor, durante as restantes cenas do filme, com as suas constantes e incríveis explosões de raiva e os seus indisfarçáveis laivos de narcisismo, de que não nos conseguimos, jamais, alhear, ainda que o quiséssemos.
Mas o que é facto é que a longa-metragem “captura-nos”, muito rapidamente, pela mão do seu protagonista e em virtude da interacção deste com a Juíza, para os méritos de um sistema de reeducação de jovens delinquentes, o qual, mesmo em face de uma personagem tão complexa como a de Malony, se mantém humano e solidário e que consegue tocar a vida daqueles jovens, de forma a que os mesmos tenham futuro.
Outra questão revelante para a qual somos catapultados é a da “metodologia” adoptada por Florence Baque: a Juíza cria, desde logo, empatia com o problema concreto com que se vê confrontada e, à medida que o comportamento de Malony, numa escalada de actos que se revestem, cada vez, de maior gravidade, lhe vai colocando “desafios” mais complicados, tenta encontrar as soluções que permitam viabilizar a sua integração na vida em sociedade, mantendo–se, sempre, imparcial (pois que não deixa de, a cada conduta do jovem protagonista, aplicar as medidas que entende adequadas, no estrito cumprimento da lei, as quais vão sendo, até, cada vez mais gravosas).
Não obstante, a dada altura, chega mesmo a desvanecer-se a clivagem entre os dois “mundos” que nos são apresentados e Florence Baque participa na festa de aniversário do já jovem Malony. Assim, há como que uma interpenetração do “mundo” dos que têm por incumbência zelar pelo cumprimento da lei no daqueles que teimam em permanecer insensíveis à mesma.
Este é um ponto de reflexão a que nos devemos ater: este sistema Justiça, de pendor marcadamente humanizado, consegue ser, de forma eficaz, o bastião dos direitos, liberdades e garantias e, bem assim, assegurar a convivência pacífica entre os elementos da sociedade.
Florence Baque alcança, com sucesso, as finalidades últimas do problema que é colocado ao sistema de Justiça francês: fazer Malony compreender o que deve à sociedade, mas Malony também consegue impor-se ante o sistema de Justiça e exigir do mesmo um tratamento humanizado. E este incrível equilíbrio de “forças” há-de manter-se até ao epílogo, sem que a ficção se conseguisse abster, como seria expectável, do tradicional happy ending.
Os sistemas de Justiça são, actualmente, confrontados com alterações de paradigmas, muito rápidas e de elevada complexidade, com novos referenciais de valores e uma reconfiguração das relações interpessoais, mas os sistemas de Justiça não podem abstrair do facto de constituírem a força motriz do desenvolvimento social e económico e de serem porta-estandarte do progresso civilizacional.
Um sistema de Justiça que se pretenda proficiente tem de encerrar, em si mesmo, de forma absoluta e verdadeiramente intrínseca, a capacidade de alterar comportamentos, sobretudo por recurso à motivação. O filme desnuda um facto evidente, mas nem sempre sopesado, que essa capacitação não se adquire nas Universidades, onde ainda é ministrado, em muitos casos, um ensino eminentemente livresco, de génese medieva, vocacionado para a interpretação de textos e para a aquisição basilar das estruturas mínimas do raciocínio jurídico. O qual tem deixado um lastro tal que penetra, quase como que inelutavelmente, a formação, ulteriormente, ministrada às profissões jurídicas e a outras que participam no sistema de Justiça, encarado na sua globalidade. De lado, vai ficando, mais do que, quiçá, deveria acontecer, a análise de comportamentos, o estudo das relações interpessoais, o aprofundar do conhecimento sobre os contextos criados em ambientes altamente problemáticos e de exclusão, a aquisição de ferramentas pedagógicas, como meios ao alcance da Justiça para reduzir a necessidade de a mesma se socorrer, tão-só, de instrumentos sancionatórios intrincados, onde abunda a concretização do sentido dos direitos codificados e a aplicação de medidas punitivas.
A relação de Malony (um potencial “monstro”) com a Justiça está nos pontos antípodas daquela que, um dia, Franz Kafka delineou para Josef K. (um cidadão honesto, probo, cumpridor e reputado). Com efeito, num Estado de Direito Democrático, a Justiça alberga essa necessária conciliação, que se traduz na imposição da ordem – e da convivência pacífica entre os elementos de uma sociedade – perpassada por uma postura de solidariedade, a qual é reveladora da forma mais perfeita daquilo que significa, na pureza dos princípios, o respeito pela dignidade da Pessoa Humana, permitindo a todo (e a qualquer) Ser Humano manter-se “de cabeça erguida”.
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