Contraordenações: o pior dos dois mundos

O direito contraordenacional ou de mera ordenação social é, muito provavelmente, o ramo do direito sancionatório mais transversal à sociedade portuguesa.

Basta perceber que estas sanções são aplicáveis quer às pessoas singulares, quer às pessoas coletivas, em múltiplos espaços da vida social e económica, por uma gritante diversidade de autoridades administrativas.

Quem estaciona o carro em cima de uma passadeira comete uma contraordenação; quem entrega a declaração de IRS fora do prazo comete uma contraordenação; o empregador do funcionário que não remete à ASAE o duplicado da reclamação aposta por um consumidor no “Livro de Reclamações” comete uma contraordenação; quem realiza uma operação urbanística sujeita a prévio licenciamento sem o respetivo alvará comete uma contraordenação; a Instituição Financeira que viola uma obrigação prevista no Código dos Valores Mobiliários comete uma contraordenação; e por aí fora…

Naturalmente, estes ilícitos são sancionados de forma muito distinta. Se uma contraordenação estradal é punível com o pagamento de uma quantia fixada entre centenas ou poucos milhares de euros, uma infração no âmbito do Direito da concorrência pode ser punida com uma coima de muitos milhões de euros.

Esta heterogeneidade de matérias e esta disparidade da medida das sanções tem constituído justificação para a criação de dezenas de regimes contraordenacionais que pouco ou nada mantêm do dito “Regime Geral das Contraordenações”, muito embora este devesse ser o repositório das regras gerais substantivas e adjetivas destes ilícitos, como, aliás, o próprio nome o indica.

Mas se o “Regime Geral das Contraordenações” se vem revelando incapaz de assegurar o direito a um processo equitativo e o respeito pelas mais elementares garantias de defesa – veja-se, a título meramente exemplificativo, que aqui vigora o princípio da irrecorribilidade das decisões, que as sentenças judiciais são sempre insuscetíveis de recurso da matéria de facto e que o prazo de interposição de recurso da sentença é de dez dias seguidos – surpreendentemente, os regimes avulsos mostram-se sempre mais penalizadores e ainda menos garantísticos!

Assim, para além das enormes dificuldades que a dispersão de regras aplicáveis neste ramo de direito provoca, a proliferação destes regimes avulsos tem originado a desaplicação do Regime Geral das Contraordenações, mesmo quando é este o aplicável. Ou seja, os Tribunais passaram a ler nas disposições do “Regime Geral” o que dizem as normas dos regimes avulsos.

A interpretação do artº 7.º, n.º 2, do Regime Geral constitui um dos primeiros exemplos paradigmáticos desta leitura “inclinada”. Onde o legislador previu “que as pessoas coletivas ou equiparadas serão [apenas] responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”, o julgador decidiu que as pessoas coletivas também respondem pelos factos praticados, no exercício das respetivas funções ou em seu nome ou por sua conta, pelos mandatários, representantes ou trabalhadores, tal como está previsto para o Mercado dos Valores Mobiliários, Concorrência, Atividade Seguradora, entre outros.

Ainda mais perturbadora e curiosa é a leitura que passou a ser feita do artº 72.º, n.º 2, do Regime Geral, onde se declarou que “compete ao juiz determinar o âmbito da prova a produzir”.

Não só alguns Tribunais leem o dito preceito como se aí se dissesse “que o tribunal decide com base na prova realizada em audiência, bem como com base na prova produzida na fase administrativa do processo de contraordenação”, tal como estipulado no artº 416.º, n.º 4, do Código dos Valores Mobiliários, como decidem que a prova produzida na fase administrativa não deve ser repetida (salvo razões excecionais e justificadas).Para além de não levar em linha de conta que as testemunhas não são ajuramentadas na fase administrativa (artº 44.º do Regime Geral), este segundo entendimento colide de frente com o princípio da oralidade e da imediação e, no limite, leva à desjudicialização deste ramo do direito.

Veja-se, por exemplo, que, na esmagadora maioria dos casos, na fase administrativa, as inquirições de Arguido/a e de testemunhas são reduzidas a auto que se reduz a um resumo – nem sempre fiel – daquilo que os inquiridos efetivamente disseram.

É óbvio que, não repetindo a prova, o Tribunal não consegue avaliar a credibilidade das testemunhas com base no que a Autoridade Administrativa deixou vertido no auto de declarações.

Como é que o Tribunal sabe se a testemunha respondeu de imediato, se titubeou ou se tremeu a voz?

E se a Autoridade Administrativa concluir que os depoimentos das testemunhas de defesa não merecem credibilidade? Pode o Tribunal fazer um juízo diverso – ou igual? – sem repetir a prova?

Acresce que, com este entendimento, bastará que a Entidade Administrativa decida ouvir todas as testemunhas que possam contribuir para a descoberta da verdade material, para impedir a sindicância judicial de uma decisão condenatória.

Nega-se o direito a ver “a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial” e “interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação” [cf: Declaração Universal dos Direitos Humanos, artº 6.º, n.º 1, e n.º 3, al. d)].

Ora, onde não há tutela jurisdicional efetiva, não há separação de poderes e não há Estado de Direito Democrático.

Deve ter-se sempre presente que os Tribunais são os únicos órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, beneficiando, para o efeito, de um estatuto de independência sem paralelo no ordenamento jurídico nacional.

Há, pois, que arrepiar caminho e tratar o direito contraordenacional em conformidade com a sua natureza de direito sancionatório, promovendo processos justos e equitativos, como manda o princípio do Estado de Direito Democrático. E devem ser os Tribunais a encabeçar esta “missão”, recusando as delegações do exercício da função jurisdicional nas Autoridades Administrativas.

Ana de Oliveira Monteiro | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas

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