Foi notícia e deu brado, não há muito tempo, uma decisão de um tribunal superior português que considerou que o “piropo” (enfim, chamemos-lhe assim, por comodidade de expressão) que está em título não constituía crime. Não chegou a cair o Carmo e a Trindade, mas houve um abanão no espaço de discussão pública e vieram abaixo algumas telhas, parte do reboco e umas quantas pedras. A mim a decisão parece-me certa, e, pondo agora de lado algumas considerações de ordem mais técnica relacionadas com a teoria da lei penal (aplicação no tempo, et cetera) ou com a teoria do crime (tipicidade, culpa), a mesma põe em evidência uma coisa que está no centro do ADN do Direito Penal e que, de há umas duas ou três décadas a esta parte, tem andado esquecida, ou pelo menos sofrido erosão, quer por parte do legislador, quer por parte do intérprete-aplicador. Quanto à sociedade em geral, nem sei bem se tem andado esquecida, ou vítima de erosão, pois não estou certo de que alguma vez a mesma tenha apreendido aquela ideia essencial, que é a de que o Direito penal é de ultima ratio, ou seja, de que só deve intervir para coisas importantes e em última instância. Curiosamente, essa ideia foi acentuada no discurso (e na lei) penal em grande parte da segunda metade do século XX, mas esse movimento conheceu uma inversão no final desse século e no início do que agora vivemos, por várias razões (sociológicas, ideológicas, comunicacionais, tecnológicas, et cetera), ao ponto de se poder falar, com propriedade a meu ver, de expansão do Direito penal e de neocriminalização.
Dito de outro modo, e indo por partes, simplificando: o Direito regula a vida em sociedade em tudo o que tem alguma importância para a convivência entre todos, o que logo faz com que áreas haja que estão fora do âmbito de aplicação e de regulação do Direito, sendo disciplinadas por outras ordens normativas – que relevam, por exemplo, da sociabilidade ou da moral. Logo, nem tudo o que interessa à sociedade e às pessoas interessa ao Direito, e assim deve ser. Depois, o Direito tem inúmeros ramos, cada um com as suas características, a sua natureza e (na maior parte deles) com os seus instrumentos coercivos, uns mais fortes, outros menos. Podem esses ramos proteger os mesmos bens jurídicos, ou uns e outros, dependendo dos casos e consoante a importância dos bens. E podem e devem, quando protegem os mesmos bens, fazê-lo de forma diferente, consoante é da natureza desses ramos do Direito e dos seus instrumentos e consoante a importância e a gravidade do que está em causa. Ora, o Direito Penal é, de todos os ramos do Direito, aquele que protege bens e regula convivências com um aparelho coercivo mais forte – que, numa lógica bélica, se poderia dizer que recorre a bombas, e não apenas a outro tipo de armamento, desde logo porque tem sempre, ou quase sempre, no seu horizonte a privação da liberdade. Por isso, deve saudavelmente ser deixado para a proteção dos bens jurídicos mais importantes e para as condutas mais ameaçadoras desses bens, e apenas se outros ramos do Direito (mais soft, digamos) não puderem, por si só, assegurar uma proteção suficiente. Com maior erudição, dir-se-ia que a legitimidade do Direito Penal depende de uma fragmentariedade de primeiro grau, e também de uma fragmentariedade de segundo grau. Ou, dito de outro modo, só é legítima a intervenção do Direito Penal se houver dignidade (leia-se importância) e carência (leia-se necessidade) de tutela penal. Caso contrário, matamos moscas a tiro, o que não só é um desperdício de balas, como também um exagero perigoso, não só pelo que simboliza, mas sobretudo pelo potencial destrutivo de uma bala, quer sobre o pequeno corpo da mosca quer sobre o que a rodeia (e para já não falar do efeito de eventuais ricochetes).
E é esta salutar simplicidade que tem andado esquecida, tendo-se o Direito Penal transformado, muitas vezes, em primeira ratio, em instrumento pelo qual todos clamam mal acontece alguma coisa, sobretudo se esse acontecimento for rodeado do ruído mediático e do temor sociológico que caracterizam a vida moderna. E isso não pode ser, por variadíssimas razões, que não cabe aqui enunciar nem esmiuçar. Fica apenas, em apontamento, a lembrança de que tudo na vida deve ser governado por uma ideia de proporção e de equilíbrio, sob pena de o doente (todos nós, nas nossas convivências) sermos mortos mais pela cura do que pelo mal, ou deitados fora com a água do banho. O mesmo é dizer, por um lado, que se o Direito Penal visa salvaguardar a liberdade, não pode a sua aplicação, porque desproporcional ou desequilibrada, tornar-se instrumento da erosão dessa mesma liberdade. E, por outro lado, o mesmo é dizer que ao sujeito que se relaciona com os outros (neste caso, com as outras) na base de “piropos alimentares” como o que está em título melhor será aplicar-lhe a pena da indiferença ou do desprezo. Assim devem ser tratados os ordinários. Criminosos, isso é outra coisa, e é nesses que devem ser concentradas as atenções, as balas e as energias. Só um Direito Penal legítimo, focado e equilibrado pode dizer a esses – deixando todos os outros de lado, incluindo os boçais – que “até os comia”.
Rui Patrício | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas
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