O Ano da Morte de Alberto dos Reis

“… um homem não vai menos perdido por caminhar em linha recta.”
 José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis

O ano de 2013 trouxe uma pseudo-reforma processual civil do direito pátrio. Contudo, não se trata de uma verdadeira reforma, como expressamente foi admitido na exposição de motivos da proposta de Lei do Governo.

Nesta exposição de motivos, materializou-se, de forma irrealista, imerecida e inexplicável, um ataque vil à Advocacia, ao imputar-lhe a causa da morosidade da Justiça. E até custa a crer que os Advogados que trabalharam na Comissão revisora do CPC, possam ter anuído na consignação desta falaciosa – e falsa – imputação, que vai fazendo o seu caminho jurisprudencial, contribuindo, inevitável e fatalmente, para o desprestígio da Profissão.

A falta de recursos humanos, e de outros, é consabidamente a causa primordial da pendência nos Tribunais portugueses. No entanto, em 2013 passou-se esta errada mensagem que prejudicou objectivamente a reputação de uma classe profissional quando se assinala,  na dita exposição de motivos, por confissão reduzida a escrito, que a reforma visou “pôr eficazmente termo ao uso de meios e faculdades de natureza dilatória que o actual Código prevê e permite às partes “. E, o que é mais grave, este argumento foi esgrimido para restringir garantias processuais, não se vislumbrando a razão para tal, já que a eliminação de algumas faculdades processuais é, esta sim, um factor que diminui e fragiliza a posição das partes (como é o caso do desaparecimento do mecanismo da aclaração de sentença e as limitações ao direito de recurso).

Ora, decorridos anos sobre a entrada em vigor do NPCP, já existe uma experiência judiciária que permite aferir da utilidade da reforma, neste caso para colocar em crise a pretensa eficácia de algumas inovações que, nos dias que correm, suscitam ainda as maiores dúvidas e causam perplexidades, como acontece com os temas de prova e a supressão da base instrutória e do questionário. À data, os responsáveis pela reforma entenderam, e consignaram, que se visava acabar com limites artificiais na fase da instrução do processo. Verifica-se, agora, que passamos a ter uma solução de acerto duvidoso, de difícil configuração e sobretudo propiciadora das mais indesejadas incerteza e insegurança jurídicas, ainda hoje motivadoras de uma recorrente e reiterada necessidade interpretativa.

A redacção do actual artigo 596.º do CPC é, sobretudo, uma operação de cosmética conceptual, visto que a mesma introduz dois conceitos indeterminados para substituir a anterior selecção da matéria de facto assente e controvertida (a base instrutória). Contudo, e em bom rigor, estamos em crer que se impõe, sempre e em qualquer caso, proceder à selecção da matéria de facto (essencial) assente – quer com base na confissão, quer em factos aceites pelas partes – e na matéria controvertida, objecto dos temas de prova. E esta é uma norma processual que bem ilustra o desacerto da reforma, porquanto deixa margem a uma interpretação que exclua tal selecção da matéria de facto assente, o que resulta, desde logo, da leitura da sua epígrafe.

O mesmo se diga a respeito do artigo 531.º do CPC que permite uma majoração discricionária das taxas do processo, sabendo os/as Advogados/as que o acesso à Justiça reclama das partes processuais um esforço financeiro manifestamente elevado, e do disposto no artigo 532.º, n.ºs 4 e 5, que deixa ao poder do Juiz a faculdade de condenação em custas e encargos da parte, com a realização de diligências consideradas manifestamente desnecessárias e de caráter dilatório.

Era dever dos profissionais da Advocacia – que participaram nos trabalhos para a reforma do CPC – por cobro à escalada do custo com o acesso à Justiça e aos Tribunais, direito fundamental plasmado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, por estarem estatutariamente vinculados a defender os direitos, liberdades e garantias de todos, pugnando pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas e judiciárias.

Não surpreenderá, pois, que, por Despacho da actual Ministra da Justiça, datado de 24.05.2018, a lastimável reforma de 2013 tenha de ser revertida. Nesta esteira, a Ordem dos Advogados foi notificada da criação da Comissão de Trabalho, a qual, no que à Advocacia respeita, sofreu alterações na sua composição e  que, entre outras coisas, está incumbida de reintroduzir o articulado da réplica para resposta às excepções alegadas pelo Réu na contestação e redefinir o regime de alegação da excepção peremptória da compensação, designadamente nas espécies processuais que não admitem articulado de resposta do autor à Contestação. 

A razão de ordem subjacente ao imperativo da reforma coincide, precisamente, a crítica que, desde sempre, lhe temos apontado: garantir a sua conformidade com os princípios estruturantes do contraditório e da igualdade das partes e, em geral, com os princípios do processo equitativo.

E, enquanto o direito processual cível segue o seu curso e avança, titulares de cargos na Ordem dos Advogados, sobretudo no Conselho Regional do Porto (CRP), servem formação “requentada” e inútil aos Advogados sobre aspectos da reforma de 2013, a qual – esperamos em breve – estará ultrapassada. Torna-se evidente, para os profissionais do foro, que a tudo isto não será completamente alheio o facto de o Presidente do CRP acumular estas funções com as de palestrante, em conferências sobre o CPC DE 2013, e as de co-autor de um Código de Processo Civil Anotado, recentemente dado a lume. Haverá coincidências entre estes factos?

À comissão de revisão do CPC, em 2013, faltaram processualistas com a estatura jurídica de ALBERTO DOS REIS, cujo profundo conhecimento doutrinal do direito adjectivo nacional e das mais modernas tendências de direito comparado permitem que viva, através dos tempos, auxiliando-nos na dura tarefa exegética, outrora desnecessária ou mais facilitada, que Código novo – que não é verdadeira e reconhecidamente um Novo Código – suscita, em claro, franco e desnecessário prejuízo da Advocacia e de quem recorre aos Tribunais para garantir a tutela judicial dos seus direitos. Agora, apesar dos poucos anos de vigência da reforma de 2013, resta repristinar articulados que assegurem um processo justo e igualitário, obrigando-nos a refazer um caminho que se revelou errático no nosso processo civil, com as inelutáveis perdas de eficiência, sempre associadas a reformas mal projectadas e até precipitadas, feitas sempre em nome de princípios enunciados pomposamente sem que os seus feitores saibam antever os seus efeitos e malefícios!

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