Justiça e jornalismo. Uma utopia?

É necessária uma justiça séria, eficaz e de qualidade.
Mas não se aceitam a arbitrariedade, a tortura e a deslealdade processual.
É necessário um jornalismo forte, inteligente, arguto, acutilante, interventivo e corajoso.
Mas não valem métodos proibidos de obtenção de prova, acessos ilegítimos, gravações ilícitas ou outros actos criminosos.
Ou seja, não vale tudo. Nem todos os fins legítimos, justificam todos os meios.
Muito menos ilegítimos ou criminosos.
Venham de quem vierem.
Fui o primeiro advogado português a defender a regra da publicidade do processo, isto há mais de duas décadas no Congresso da Justiça. Fui criticado por muitos e nunca defendido por um só jornalista. Em matéria de transparência estamos conversados.
Estive em 2007, como representante da Ordem dos Advogados, na Unidade de Missão para a Reforma Penal, onde, mais uma vez, intransigentemente, defendi a publicidade do processo e na sequência do trabalho desta Comissão foi instituída no Código de Processo Penal a regra da publicidade. Rotular quem defende a publicidade e a transparência, como se rotulou, é de quem é completamente ignorante e, pior, não se informa. Quando se publica sem se confirmar a fonte ou ouvir o visado, dá o que dá…
Os jornalistas têm acesso aos processos nas formas previstas na lei. E não pela porta do cavalo ou pelo buraco da fechadura. Muito menos incumprindo a lei ou cometendo crimes. Ensinei jornalistas, escrevi sobre o tema, acusei e defendi jornalistas, quando achei que devia acusar e quando achei que os devia defender. E continuarei a fazê-lo. Mesmo com ameaças.
Sou defensor de um jornalismo de investigação rigoroso que não se compadece com algumas caixas de ressonância.
E por isso não admito que nenhuma jornalista ou comentador, fale ex cathedra do que não percebe, ou, pior, do que percebe bem demais, mas não quer perceber ou quer esconder, misture alhos com bugalhos ou aleivosamente queira distorcer factos. Nunca falei de prender jornalistas. Mas, atenção, se há flagrante delito, e ele se repete despudoradamente, deve haver reacção e detenção e consequente julgamento sumário e, havendo crime e confirmado o seu agente, condenação.
Há quem tenha medo de dizer (e de fazer) isto. Eu não.
O que disse, e mantenho, agora urbi et orbi, é que “não há cidadãos de primeira e cidadãos de segunda” e que “incumprindo a lei devem ser todos processados” e, já agora, processados nos termos da lei. Sob pena de injustiça, ou até de prevaricação.
Resumindo e em resposta: de cadáveres e putrefação sabem os abutres e os chacais. De opacidades e de Estado Novo saberão melhor os que alimentam ou convivem diariamente com, aqui e ali, alguma ditadura mediática, a violação do segredo de justiça, o abuso de liberdade de imprensa, a calúnia, a ofensa dos direitos humanos fundamentais… e sentem-se bem com isso.
Todos têm medo de enfrentar este poder incontrolado ou os abusos de poder e ninguém se atravessa para dizer que o rei vai nu.
Publicidade e acesso legítimo ao processo, a todos os processos, desejável; não se confundem com libertinagem, irresponsabilidade, deslealdade, publicação criminosa e acesso ilegítimo, muito menos com difusão malévola, cirúrgica, dirigida e não autorizada de gravações do processo, muito menos à revelia da necessária autorização.
Depois dizem que não percebem as razões da condenação pública e individual.
Confunde-se liberdade com libertinagem e ofensa. Confunde-se informação com crime.
Não se percebe como é que jornalistas pactuam ou jornalistas sérios não se importam com crimes cometidos por fontes internas dos processos, cobardes, interessadas e/ou criminosas. Porque se não for assim, a alternativa é bem pior – acedem ilegitimamente e em tempo real aos servidores! Ou são ou deixam-se ser manipulados, pactuando com criminosos, e não se importam? Ou são autores materiais, morais ou receptadores de mercadoria roubada, conformam-se, usam-na, fazem disso lucro, alcançam fama e… assobiam para o lado?
Não se percebe que, em tempo real, haja reproduções de gravações e depoimentos, sem  que tivesse havido acesso legítimo aos mesmos, em desobediência de ordem legítima do juiz e em infracção à lei penal.  Menos se percebe ainda o tráfico de informação reservada que vai para uns e não é disponibilizada a outros. Não há, nem deve haver, jornalistas de primeira e outros de segunda. Uns com acesso ilegal a fontes e os outros à espera.
Por outro lado, perturba-se gravemente a instrução e a espontaneidade dos depoimentos. Dão-se a conhecer, para o exterior, relatos em directo, obstruindo a realização da justiça. E vem-se depois com o discurso estafado que é preciso informar.
Pois informe-se, mas sem cometer crimes.
Trabalhe-se e faça-se investigação sem se estar preguiçosamente montado em fontes privilegiadas.
Uns poucos jornalistas, os amiguinhos das toupeiras, os filhos, têm a informação traficada, os outros, os isentos, os sérios, os enteados, são ultrapassados pelos criminosos e ficam a ver navios. Só por medo, cobardia ou cumplicidade é que a cidadania, a imprensa e as autoridades podem continuar a permitir crimes em flagrante delito e a continuação da actividade criminosa.
A não ser mesmo que se queira aceitar algum jornalismo que se torna produto avariado e conspurcado, porque, esse sim, é contaminado, bafiento e provém do bas fond? Pensava que não iríamos ter estes problemas no novo milénio. Enganei-me. Já não há coragem. Há medo. Pensei que a máquina judiciária tivesse a hombridade, a inteligência e a coragem de agir em defesa da legalidade com todos os meios que lhe são dados. Pensei que os profissionais da justiça não se ficassem pela rama e se insurgissem contra esta rebaldaria. Pensei que os jornalistas discutissem estes temas, se desmarcassem dos actos criminosos e, com elevação e para sua própria defesa e de um jornalismo de qualidade, separassem o trigo do joio.
Mas isso seria noutro país e não nesta república das bananas ….. e dos bananas. Talvez os cidadãos, quando se fartarem, se revoltem contra este estado de coisas. É a minha última esperança. Mas já não espero muito…

Carlos Pinto de Abreu | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas

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