Para “Fazer Direito”: o regime jurídico da avaliação do impacto na igualdade de género das normas aprovadas pela administração pública e os órgãos de soberania

No mês internacional da mulher, enquanto que em Hollywood se afixam cartazes à beira da estrada – para denunciar a naturalidade com que ainda se encara a violação de uma mulher – e o assédio sexual deixou de ser ficção e tomou contornos de realidade, por cá, ao mesmo tempo que constatámos que o fosso salarial se agravou entre homens e mulheres, mais do que em qualquer outro país do velho continente, e a toponímia é apenas 15% feminina, temos de nos congratular com o surgimento de um novo regime jurídico da avaliação de impacto de género de actos normativos.

“A civilização é a razão da igualdade.” Camilo Castelo Branco

É sobre esse regime jurídico que nos debruçaremos (ainda que de forma assumidamente sintética), naquele que também não deixa de ser um artigo de imperativa homenagem a todos/as quantos/as inscrevem o seu nome na história da luta pelos direitos fundamentais das mulheres e para reflexão dos/as que, na peugada acrítica de uma tradição de nefasta misoginia – pois há que ter a coragem de afirmar, de forma bem audível, o que não pode ser cumplicemente silenciado – se têm deixado ultrapassar, em matérias de direitos humanos.

O regime jurídico da avaliação de impacto de género de actos normativos será introduzido no nosso ordenamento jurídico através da Lei n.º 4/2018, publicado no Diário da República n.º 29/2018, Série I, de 2018-02-09, e entrará em vigor no primeiro dia do segundo mês seguinte à sua publicação. Trata-se, sob a nossa óptica, de uma ferramenta essencial para se assegurar o progresso no que respeita a igualdade efectiva de direitos entre homens e mulheres.

Por força deste regime legal, a utilização de linguagem não discriminatória na redacção conferida a normas passará a ser analisada e avaliada, de forma vinculativa, mediante a eliminação (ou, pelo menos a redução ao mínimo) da indicação do género, por recurso à utilização de expressões verdadeiramente inclusivas e neutras, de forma a suprimir uma injustificada predominância do masculino (sendo falso que o mesmo seja universal, pelo menos enquanto existirem seres humanos do género feminino), consagrando-se assim, por via legal a obrigatoriedade do Estado português produzir Direito “não discriminatório”, como resulta expressamente do artigo 4.º daquela Lei. Surge, pois, neste conspecto, uma verdadeira – e muito relevante – mudança de paradigma, ao nível da técnica legislativa, sob a forma de Lei e com esse grau de inexorável vinculação.

Tal Lei – que se reconduz, nesta medida, ao comando constitucional ínsito no artigo 9.º, alínea h), da Lei Fundamental – de acordo com o qual incumbe ao Estado a promoção da igualdade entre homens e mulheres – e à concretização de exigências e compromissos assumidos pelo Estado português, ao nível internacional e europeu, pode significar, claramente, uma revolução no âmbito daquilo que epitetamos de “ciência da legislação” e de incorporação do princípio do gender maisntreaming.

Comecemos por delimitar o conceito de acto normativo. Com efeito, nos termos do artigo 112.º da Constituição da República Portuguesa, são actos normativos os actos legislativos, como sejam, as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais. E, em conformidade, nos termos do artigo 2.º, da Lei n.º 4/2018, de 9 de Fevereiro, serão objecto de avaliação prévia de impacto de género os projectos de actos normativos elaborados pela administração central e regional e, bem assim, os projectos e propostas de lei submetidos à Assembleia da República. Assim sendo, esta Lei rege a respeito da avaliação prévia do impacto de género e, ainda, a respeito da avaliação sucessiva.

No que respeita à avaliação prévia de impacto de género, a qual tem por objecto “(…) a identificação e a ponderação na elaboração dos projectos de actos normativos, entre outros, dos seguintes aspetos:

  1. a) A situação e os papéis de homens e mulheres no contexto sobre o qual se vai intervir normativamente;
  2. b) A existência de diferenças relevantes entre homens e mulheres no que concerne o acesso a direitos;
  3. c) A existência de limitações distintas entre homens e mulheres para participar e obter benefícios decorrentes da iniciativa que se vai desenvolver;
  4. d) A incidência do projecto de ato normativo nas realidades individuais de homens e mulheres, nomeadamente quanto à sua consistência com uma relação mais equitativa entre ambos ou à diminuição dos estereótipos de género que levam à manutenção de papéis sociais tradicionais negativos;
  5. e) A consideração de metas de igualdade e equilíbrio entre os sexos definidas em compromissos assumidos internacionalmente pelo Estado Português ou no quadro da União Europeia.

Nos termos do artigo 7.º da citada Lei, os elementos sobre que deve incidir a avaliação prévia são os seguintes: a situação de partida sobre a qual a iniciativa vai incidir; a previsão dos resultados a alcançar; a valoração do impacto de género e, bem assim, a formulação de propostas de melhoria dos projectos.

Ressaltaremos, no âmbito desta análise, a valoração do impacto de género – vide artigo 10.º – elemento que tem o desiderato de assegurar a quantificação ou qualificação dos efeitos da norma no que respeita à igualdade entre homens e mulheres e ao cumprimento dos objectivos das políticas para a igualdade, o que será alcançado numa tríplice vertente (impacto negativo, nos casos em que a aplicação das normas reforcem os estereótipos de género que conduzem, inelutavelmente, à desigualdade; impacto neutro, sempre que o género não surja como significativo para o desenvolvimento e aplicação das normas ou pelas mesmas não surge afectado e, finalmente, o impacto positivo, nas circunstâncias em que a aplicação da norma tem impacto relevante na questão do género; ou a questão de género é um dos elementos capitais da norma, no sentido do impacto positivo na diminuição das desigualdades; finalmente, sempre que a perspectiva da paridade de género seja o arrimo fundamental das normas, que têm como desígnio a promoção da paridade entre homens e mulheres, verificando-se uma pulsão transformadora).

Já no que toca a avaliação sucessiva, esta pode ocorrer a qualquer momento e não apenas nos casos em que a avaliação prévia está dispensada, por urgência, nos termos da Lei (cf. Artigo 5.º, n.º 2), sendo de referir que esta avaliação pode ocorrer a qualquer momento, quer sob proposta da pessoa responsável pela avaliação prévia ou do órgão responsável pela aprovação do acto normativo. E, para que tal ocorra, deverá ser sopesada, designadamente, a relevância económica, financeira e social da matéria; o nível de inovação que a norma implica à data de início de vigência, a existência de complexidades administrativas, jurídicas ou financeiras na sua aplicação ou implementação. Para tanto, de acordo com o preceituado no artigo 14.º da Lei, deverão ser tidos em conta, em suma, os seguintes elementos: o efectivo impacto das medidas na situação de partida reconhecida; a observância das metas e efeitos pretendidos; a valoração do impacto de género realmente assinalado; a enunciação de propostas de modificação conducentes à concretização dos objectivos primitivamente delineados.

Claro que a iniciativa legislativa supra perscrutada não está isenta de mácula, sob a nossa perspectiva, posto que consideramos que a Lei poderia ter um carácter muitíssimo mais inovador e abrangente, tendo, no entanto, a vertente análise versado, sobretudo, no que de positivo e pedagógico a Lei encerra.

Finalmente, o dever de promoção de formação que a Lei consagra, a final, não deve, obviamente, passar despercebido a nenhum(a) Jurista, merecendo, sim, uma particular atenção por parte da Advocacia portuguesa, cujo Estatuto prevê expressamente como sendo atribuição da Ordem dos Advogados (e já, agora, das Advogadas) defender o Estado de Direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de advogado (e de advogada), promovendo a formação inicial e permanente dos advogados  (e das advogadas); promover o acesso ao conhecimento e aplicação do direito e contribuir para o desenvolvimento da cultura jurídica e aperfeiçoamento da elaboração do Direito.

Infelizmente, a inscrição da Advocacia, neste processo evolutivo rumo à igualdade, terá de se quedar por aqui, pois como resulta expressamente do sítio da Assembleia da República, na internet, no que respeita à Actividade Parlamentar e Processo Legislativoao arrepio daquelas que são, por exemplo, as posições da Procuradoria-Geral da República e do Conselho Superior da Magistratura – aquela não será propulsora deste avanço, no que respeita à qualidade da legislação, entre nós, produzida.

Mas continuamos a acreditar que a “ciência legislativa” não pode evoluir sem o esforço individual de cada um/a de nós – Advogados e Advogadas individualmente considerados/as –, ou seja, como ensinou Virgínia Woolf “… sem aquele nosso esforço, sem aquela nossa determinação…“.  

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