Por que fazemos falta

Ser advogado é mais difícil do que parece. No que me diz respeito, trabalhar como penalista pode ser exasperante. Não quero agora falar nas novidades legislativas, nas novidades que não são, mas gostaria que fossem, na interpretação estrita deste ou daquele preceito. Quero apenas dedicar umas linhas à exasperação de advogar quando a direção da audiência é confundida com um “quem-me-dera-fazer-isto-tudo-sozinho(a)”.

Acreditar que há contraditório quando um juiz pergunta sistematicamente onde queremos chegar com determinada pergunta é acreditar numa miragem. Se a testemunha estiver minimamente atenta e assistir à minha “explicação” ao tribunal, a espontaneidade da resposta esvai-se. Pode a testemunha tomar o partido de quem pergunta, ou assumir uma posição que favoreça outros sujeitos processuais. Ou seja, deixa de responder a factos, antes procurando servir uma estratégia favorável ou contrária à do advogado que teve de antecipar onde queria chegar. Proporcionar essa manipulação é não conhecer a natureza humana e preferir o formalismo de uma rígida direção da audiência que esquece que a verdade nem sempre se descobre com perguntas diretas, por muitas juras que se tenham feito de que só a verdade seria dita. Os advogados também têm uma estratégia, seguem um caminho. E o contraditório é feito também dessas diferentes estratégias. É o contraditório que contribui para a isenção dos juízes. Os advogados não vêm atrapalhar ou ludibriar os juízes. Vêm apenas ajudá-los a libertarem-se de si próprios.

É da natureza humana arrancar com uma ideia feita para qualquer tema. É normal e, num certo sentido, até saudável. Significa que há uma experiência comum que reage ao que conhece: no início da audiência de julgamento, reage à “superficialidade” de uma indiciação e à “superficialidade” de uma contestação. Só as vicissitudes da audiência permitem chegar a um resultado mais próximo da justiça: à “reação” que uma visão mais completa dos eventos permite. Ora, se apenas a lógica do juiz determina tudo o que se passa na audiência, incluindo as perguntas a fazer, por muito esforço de isenção a que o mesmo se autoimponha, a natureza humana tenderá a prendê-lo no solilóquio do seu preconceito. E as perguntas serão também reféns desse solilóquio.

Com bom senso, é possível evitar que alguns Colegas criem entropias na descoberta da verdade, sem que seja necessário prescindir deles. Não se pode prescindir dos advogados. E há audiências onde parece que os advogados estão a mais, são um excedente que a lei impõe, mas de que o tribunal prescindiria de bom grado. Afinal, parece crer-se que as becas são independentes e as togas representam a visão parcial. E esse é o erro profundo: não há independentes! Há esforço de independência. E esse esforço de independência só é possível quando confrontado com as versões que se digladiam. É precisamente por os advogados representarem as “partes” que contribuem para um resultado final que, se espera, não seja uma visão de “parte”. É esse ruído incómodo, esse caminho nem sempre antevisto, que contribui para que os juízes olhem à esquerda, à direita e ao centro, apesar da tendência natural que um determinado aspeto do processo venha a determinar inicialmente.

Outro mito absoluto é o das perguntas que implicam resposta de “sim” ou “não”. Sei que esta referência aparece em muitos manuais de processo. Reconheço a ideia comum de que as perguntas fechadas são mais propensas à indução dos depoentes. Mas a verdade é que, em determinadas ocasiões, essas perguntas são muito eficazes para a descoberta da verdade. Aliás, não é invulgar ver um juiz a inviabilizar uma pergunta desse teor, invocando uma regra inviolável, para logo a seguir fazer uma pergunta que implica resposta de “sim” ou “não”.

Finalmente, só excecionalmente se deveriam fazer perguntas através do juiz, ainda que estejamos a falar de esclarecimentos. Um julgamento dinâmico, que não se contente com uma “verdade a despachar”, não pode depender de um dominus que deixe a sua autoridade controlar a função, em vez de deixar a função servir-se da autoridade.

Não há lei que resolva isto. Não há reflexão doutrinária que possa dar todas as respostas. Há apenas uma cultura de contraditório que tem de ser interiorizada, não só formal, mas substancialmente. Tudo apesar dos Colegas que, por vezes, não respeitam o Tribunal, que efetivamente se perdem do objeto do processo. É um custo da democracia e da justiça: perder tempo com alguns para aproveitar todos os outros que podem contribuir para melhores decisões.

Cabe a cada um de nós não baixar os braços, porque, por muito estranho que pareça, inclusive para os advogados não penalistas, é precisamente por causa das ideias feitas que nós fazemos muita falta.

Pedro Duro | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas

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