“Os fins (não) justificam os meios”

Há não muito tempo, Sofia Ribeiro Branco escrevia sob este título. Perdoar-me-á, certamente, a falta de originalidade, até porque lhe usurpo apenas a epígrafe, fazendo referência a questões diversas. Mas não deixa de ser curioso – sintomático porventura – que vários assuntos surjam sob um pretexto tão ‘maquiavélico’.

Sou advogada penalista por convicção. Seguramente por isso, o tema dos direitos dos arguidos em processo penal é-me especialmente caro – só concebo um direito processual penal digno de um Estado de Direito Democrático que preste tributo aos direitos fundamentais dos que sejam julgados (acusados ou, até, investigados) pela prática de um crime.

Esta questão pode, obviamente, ser considerada através de distintos prismas: em particular, e sobre os quais ora me debruçarei – o da lei positivada na ‘(quase) perfeição’ e da lei que, porventura ao longo do tempo, se distanciou daquela, revelando as suas imperfeições e exigindo que, paulatinamente, as suas arestas sejam limadas. Ambas terão de ter, porém, um único pano de fundo: a dignidade da pessoa humana.

Por princípio: a verdade que resulta de um processo penal só pode ser uma verdade processual, não só porque o julgamento se faz de uma reconstituição de factos – e, por conseguinte, resulta da apreciação que um terceiro faz, a posteriori, do que se pensa ter ocorrido – mas também porque esse julgamento tem, num Estado de Direito, de ser justo e equitativo. E essas regras, impostas em nome dos mais fundamentais direitos das pessoas, são o que muitas vezes impede que se alcance a verdade material. E determinam que, a final, se decida de forma materialmente iníqua. É o preço assumido por uma justiça que se quer … justa.

Isto significa, por outras palavras, que uma pessoa não pode ser interrogada horas a fio, sem comer e sem dormir, mesmo que soubéssemos que esse era o caminho para lhe vencer as resistências de assumir o acontecido. Há limites, ancorados na dignidade da pessoa humana, que não podem ser transpostos. A integridade física e moral da pessoa é, assim, inviolável por imperativo constitucional.

De outro passo, não pode entrar-se em casa de outrem, contra a sua vontade, durante a noite, revistar as suas coisas e apreender o que se aprouver, apenas porque se considera que ali estarão as provas irrefutáveis de um furto ocorrido no dia anterior. Porquê? Porque os direitos fundamentais em causa – relativos, em especial, à reserva da esfera da intimidade privada e familiar – só em circunstâncias excecionalmente graves podem sofrer algum tipo de limitação.

Ainda numa outra perspetiva: ninguém pode ser obrigado a testemunhar contra familiares próximos – como sejam filhos, pais, irmãos ou cônjuge. Para além dos vários valores individuais e supra individuais envolvidos, há uma ideia de respeito pela condição humana evidente e que a todos nos toca: o conflito de consciência em que, colocados naquela situação, viveríamos entre dizer a verdade e incriminar alguém que nos é especialmente querido. Por conseguinte, ainda que o pai seja a única testemunha ocular de um homicídio perpetrado pelo filho não pode ser compelido, salvo se essa for a sua vontade, em relatar o que presenciou.

Quanto à nossa lei constituída, variadíssimos outros exemplos poderiam ser apontados sem que mácula se lhe reconheça no que à proteção dos direitos fundamentais concerne. Porém, e como toda a regra, também esta comporta exceções.

Já muito se falou dos ‘megaprocessos’, do consequente coartar dos direitos de defesa e do impacto da ‘megaprocessualização’ na realização da Justiça – P. Saragoça da Matta fê-lo, neste espaço, numa síntese certeira. Não vou, por isso, tecer mais que uma ou duas considerações a este propósito.

É manifesto que o Arguido, no âmbito de um processo-crime, quando confrontado com uma Acusação de, por exemplo, 4.000 páginas não pode, no prazo que a lei prevê, de 20 ou 50 dias, preparar uma Defesa condigna. Esta evidência é tão mais atroz quando se constata que a prova recolhida é (des)organizada, equacione-se, ao longo de mais 1.000 volumes de processo.

E o que dizer se o Arguido pretende arguir irregularidades ou nulidades face à Acusação proferida ou à investigação realizada? É (humanamente) possível fazê-lo nos prazos legais de 3, 5 ou 10 dias? Naturalmente que não.

Raciocinando numa outra perspetiva: imagine-se que a Investigação, ao longo dos 4 anos em que se desenrolou, recolheu prova através de interceções telefónicas e, a final, transcreveu 3.500 conversas que considerou pertinentes para o objeto processual – ou, melhor dizendo, para a sustentação da Acusação proferida. O Arguido não teve, até aí, uma palavra a dizer e cabe-lhe, agora, no seu prazo de Defesa, sindicar não só essas transcrições, como também ouvir e analisar as demais interceções realizadas (que, seguramente e na melhor das hipóteses, serão em volume três vezes superior ao selecionado). Após, o Arguido terá de transcrever, a expensas suas e nesses mesmos prazos, aquelas que considerar se impõe sejam transcritas para serem valoradas como prova. Se, a tudo isto, se somar o entendimento, já acolhido por alguma jurisprudência nacional, que o Arguido deve fazer a audição e análise das interceções não transcritas na secretaria do Ministério Público responsável pelo inquérito, teremos o seguinte cenário-equação:

No prazo legal de Defesa de 20 ou 50 dias, o Arguido deve analisar 4.000 páginas de Acusação, 1.000 volumes de processo, 3.400 transcrições e 10.000 ficheiros áudio de conversas intercetadas – sendo que, quanto a estes, deverá ainda ter de conciliar-se (desde logo fisicamente, junto do balcão da secretaria), com os demais arguidos (imagine-se, por hipótese, 10 ou 20 Arguidos acusados) que, no mesmo prazo, visam exercer direito semelhante. Em paralelo, terá o Arguido de estruturar a própria peça processual a submeter a juízo.

Poderá dizer-se: os prazos e as contingências na análise da prova que se deixaram identificados resultam da própria lei, uma vez que o Estado de Direito, a par com o referido respeito pelos direitos individuais, exige, também, que se promova a defesa das suas instituições, se salvaguarde a vida em sociedade, a segurança de todos e se alcance uma justiça que procure ir ao encontro da verdade material e se revele eficaz.

Importa, pois, reconhecer que o nosso sistema penal é o resultado de décadas de tentativas de conciliação e harmonização entre estas várias preocupações e aceitá-lo enquanto tal.

Sem prejuízo, impõe-se outrossim assumir que a realidade frequentemente suplanta a capacidade de previsão do legislador, e que, de igual modo, o desenvolvimento legal nem sempre é tão célere quanto a evolução da realidade. Por conseguinte, a interpretação que se faça das normas legais deverá, sempre, respeitar os ditames constitucionais, pois que só assim se honra o (aquele) processo penal.

Uma única conclusão se impõe, portanto, independentemente do caminho que se percorra: quando está em causa a dignidade do Homem, como seja no exercício efetivo do Direito de Defesa, só uma solução é legítima – a que garanta o respeito absoluto pela pessoa humana.

Maquiavel nunca escreveu a célebre frase “os fins justificam os meios”; facto é que esta perdurou como síntese de todo o seu pensamento e legado. Não permitamos, nós, que o mesmo suceda com a nossa Justiça penal. Temos todos – sobretudo os atores judiciários que, por isso, se diz participarem na realização da Justiça – a obrigação de garantir que assim não seja.

Dirce Rente | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas

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