Há uns anos um Distinto Advogado lastimava, com inequívoca razão, o facto de, contra um cliente seu, o Ministério Público estar a “salamizar” a realidade, criando o máximo número de processos possível. Com a peculiaridade de a acusação de cada um deles ser prolatada apenas quando no processo anterior estava a terminar o julgamento. Com tal estratégia a “Justiça” conseguia algo extraordinário: o Arguido, condenado num processo, via-se arrastado pelo calvário de um novo processo criminal, e assim sucessivamente meia dúzia de vezes. Esse procedimento permitia que cada facto fosse julgado de per se, em processos com factualidade reduzida. Isto apesar de o Arguido e as circunstâncias de tempo, modo e lugar claramente aconselharem a apensação. Esse arguido acabou por se ver a cumprir penas sucessivas com cúmulos, na prática, inviabilizados.
Nessa época o gigantismo dos factos quando considerados na sua totalidade e as circunstâncias de tempo, modo e lugar serem exactamente as mesmas não impunham a apensação. A “megaprocessualização” não era necessidade imposta pela realidade.
Mais recentemente, quando foi necessário investigar e julgar o fenómeno conhecido como “Caso BPN”, e apesar do gigantismo de alguns dos processos criminais desse universo, também a concentração num único processo de todas as realidades a investigar e julgar não foi imperiosa. Assim que os respectivos Arguidos tenham sido molestados em diversos processos criminais, em que o grosso da matéria de facto, “de enquadramento” como se dizia nos libelos acusatórios e pronúncias, ser exactamente a mesma.
Essa “salamização” implicava que os Arguidos fossem constantemente colocados nessa posição em vários processos, sucessivamente, obrigando-os a viver mais de uma década a defender-se em processos que, sendo diferentes, eram, e são, na sua base sempre a mesma coisa: a apreciação da sua actividade comercial ao longo do mesmo tempo, mas separada em diversos processos, apesar de os negócios investigados terem exactamente a mesma natureza, contornos, formalizações, etc.
Confessa-se a perplexidade perante tal opção acusatória. E mais ainda quando, década e meia volvida, as considerações usadas para criar “megaprocessos” são as mesmas que antes eram desconsideradas: afirma-se que os factos são indissociáveis, que os Arguidos são os mesmos, que o tempo, modo e lugar são coincidentes. Mesmo que sejam “metidos” no mesmo “saco” negócios totalmente diferentes, com protagonistas apenas em parte comuns.
Ora, se a salamização processual torna quase impossível a vida a um Arguido no plano social, além de o manter a frigir em lume brando por lustres sucessivos, depauperando-o moral, patrimonial e socialmente, não menos certo é que a megaprocessualização impõe consequências ainda mais negativas para o Arguido arrastado para tais turbilhões.
Não será fácil, parece óbvio, investigar num só processo uma mão cheia dos maiores negócios de uma década, envolvendo as maiores empresas portuguesas. Mas se é óbvia essa dificuldade, não menos patente é a quase impossibilidade de, com prazos legais peremptórios, os Arguidos discernirem o que é que lhes diz respeito. Isto porque têm de procurar de quê é que têm de defender-se num amontoado de factos em que se analisam tais negócios diversos (na maior parte dos quais nem sequer cada um deles participou), numa pilha de milhões de documentos sob todas as formas físicas e informáticas possíveis, de milhares de horas de escutas telefónicas, etc.
Com efeito, aqui a questão não é a de encontrar a via “boa”. É sempre e só a de seguir a via “menos má”. E a via menos má, parece-nos só poder ser a da “salamização”. Isto por uma série de razões facilmente entendíveis, seja por quem anda no foro criminal, seja por quem dele nada sabe.
Na verdade, a megaprocessualização não tem virtudes, a não ser a da garantia aos arguidos de que são incomodados apenas uma vez. Mas nem sequer lhe dão a benesse de terem um processo que tarde menos do que a meia dúzia de processos sucessivos que seriam a alternativa processual da acusação. É que se 5 processos podem levar 10 ou 15 anos a ser investigados e julgados, 1 megaprocesso durará exactamente o mesmo tempo. Com uma diferença: a existência de uma real garantia dos direitos de defesa do Arguido é totalmente incompatível com um megaprocesso.
Consegue alguém, em 30, 60 ou 180 dias ler, entender, concatenar, explicar e desmontar, com alegações e prova, uma acusação maior do que o “Guerra e Paz”? Não consegue! E não consegue pela simples razão de que também nesse prazo nunca conseguiria a investigação concatenar, entender e demonstrar aquilo que fez verter na Acusação.
Por alguma razão uma investigação deste tipo “imperiosamente”, segundo o MP, demora anos. Ora, se para investigar são necessários, v.g., 36 meses, pelo menos há que ser leal e perceber que não há igualdade de armas em se pretender que a resposta possa ser dada em 2 meses. Não advogo que sejam dados à defesa prazos iguais aos que teve a investigação. Mas não posso admitir como equitativo que 36 meses de ataque imperiosamente tenham de ser defendidos em 2 meses.
É que um processo não é só uma “Acusação”! Como se disse, são milhões de ficheiros documentais, milhares de horas de escutas telefónicas, intercepções de correspondência, etc. E apenas o trabalho de fiscalização da justeza e regularidade da investigação que levou à acusação leva muito mais tempo do que 2 meses. É claro, é patente e é óbvio.
Mas não só! Não é a Defesa efectiva que se vê prejudicada por um megaprocesso. Há algo muito mais grave do que isso, se é que algo pode ser mais grave do que inviabilizar na prática que alguém se defenda.
O mais grave é que o julgamento está confiado a seres humanos: nestes casos um conjunto de três seres humanos, cuja capacidade de razão e emoção, cuja capacidade de memória e raciocínio, cujo tempo de trabalho e vida pessoal, não são compagináveis com a possibilidade de dar como provados ou como não provados 15 ou 20 mil factos. Ou ao invés! Até pode ser muito fácil fazerem-no: basta assumirem como boa a “narrativa”, como hoje se diz, constante da Acusação ou Pronúncia.
Mas um julgamento criminal não é, nem nunca poderá aceitar-se justamente que seja, uma confirmação, uma homologação, de uma narrativa parcial trazida a juízo pelo MP. O trabalho do julgador é maior, e mais importante, do que isso. É o de entre a narrativa parcial da Acusação e a narrativa, também parcial, das Defesas, encontrar a Verdade. Ainda que seja a verdade processual.
E esse caminho de encontrar a verdade processual pressupõe que sejam ardósias em branco quanto a convicções, quando a produção de prova se desenrola. E digo desenrola porque a imparcialidade não pode erodir-se com o avançar da produção de prova. O justo Juiz, imparcial, tem de racional e emocionalmente conseguir reservar-se a juízos de convicção antes de finda a produção de prova.
Sei bem, sabemos todos, que não é assim! Não é assim sequer que funciona a mente humana. Tantas e tantas vezes a convicção do Tribunal está preformada quando o julgamento começa. Tantas vezes ela vai sendo desconstruída à medida que a prova é produzida. Mas também tantas vezes tal não sucede, legitimando aquele velho aforismo que dizia haver tribunais que julgavam “com prova, sem prova e contra a prova”!
Ora, se é assim em geral, se sabemos que em todo e qualquer caso há sempre o risco de haver um julgador menos capaz de se despir das suas pré-convicções, pré-conceitos, pessoais uns, de origem mediática outros, o que não se passará num megaprocesso? Em que até a compreensão da narrativa de uma das partes é difícil, quanto mais a compreensão das narrativas de todas as partes.
Num megaprocesso não são só as garantias de defesa stricto sensu, i.e. aquelas que cabe à defesa exercer directamente através da sua actividade, que saem demolidas. São as garantias gerais de defesa que desaparecem totalmente, pois está a exigir-se a três mentes humanas, com as limitações gnoseológicas, emocionais e espirituais que caracterizam a humanidade, que se mantenham durante os 5, 6, 10 anos de sessões de julgamento isentos de antecipação de convicções. Que não façam um pré-julgamento antes de ouvir a prova e a contraprova.
Por tudo isto, apesar do injusto adveniente de fatiar factos entre vários processos contra o mesmo arguido, o mal menor ainda é esse. O mal maior é o de, à partida, todos nós sabermos que num megaprocesso não há justiça possível! Pelo menos não há aquela justiça que entendemos ser fundamental para que nela façamos fé e para que com ela nos sintamos seguros.
P. Saragoça da Matta | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas
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