Num contexto de crise e austeridade, os escândalos financeiros e, em particular, as falências – envoltas em suspeitas de crime – dos bancos BPN, BPP e BES, suscitaram um sentimento generalizado de revolta e o desejo de punições rápidas e exemplares. Mas, para além dos bancos, também os reguladores estavam na mira das críticas e ódios publicados.
Na urgência de apaziguar ânimos exaltados, alguns responsáveis pela supervisão (supervisão essa que durante muito tempo nada viu ou ouviu…) apressaram-se a anunciar a abertura de processos sancionatórios e a antecipar publicamente juízos de condenação.
Abriram-se processos e constituíram-se arguidos.
Sucede que a realidade não era linear, mas antes muito complexa. E era muito complexa não só do ponto de vista da quantidade de operações a analisar, informações a processar e documentos a coligir, mas também do ponto de vista da própria legalidade: em alguns casos, a fronteira entre opções tecnicamente aceitáveis – ainda que arrojadas – e ilegalidade era ténue; noutros, as práticas e procedimentos que mais tarde vieram a ser censurados haviam sido de alguma forma amparados pelos reguladores.
Por falta de capacidade e experiência, os reguladores não conseguiam, em tempo útil, satisfazer a insaciável opinião pública. E colocados na posição de instrutores, acusadores e julgadores, os procedimentos sancionatórios liderados pelos reguladores eram ademais pouco convincentes, em alguns casos de regularidade processual duvidosa e não raras as vezes justamente censurados em recursos pelos tribunais judiciais.
Perante o fracasso da reclamada actuação exemplar, o poder político e os reguladores foram alimentando a ideia – tão falsa quanto ignóbil – de que a culpa da demora dos processos era das injustificáveis prerrogativas da defesa, a qual conseguia, através de mecanismos dilatórios e subterfúgios legais, entorpecer, dificultar ou mesmo impedir a realização da justiça. No contexto de uma crise com origem financeira e de um povo vergastado com desemprego e austeridade, estas indecorosas insinuações foram combustível para um fogo que foi alastrando.
Este discurso demagógico teve efeitos perversos, pois ao invés de centrar os seus esforços em garantir uma investigação eficaz e em dotar os tribunais dos meios necessários para julgar proficientemente estes processos (por exemplo, disponibilizando um staff permanente de juristas e técnicos para auxiliar os juízes) – ou seja, em combater as verdadeiras causas dos atrasos processuais –, o legislador limitou-se a seguir a via imediata e populista de restringir e limitar os direitos de defesa dos arguidos.
E isto sucedeu quando se deveria ter feito precisamente o oposto, pois a especial complexidade deste tipo de processos torna ainda mais difícil a defesa dos arguidos. Hoje verifica-se a lamentável prática de notificar os arguidos de acusações com mais de mil páginas de texto corrido, em processos instruídos com dezenas de milhares de documentos, e esperar que os arguidos se defendam cabalmente em apenas 30 dias (e muitas vezes em período de férias). Claro que nenhum prazo semelhante foi estabelecido para os acusadores, os quais dispuseam de anos a fio para coligir factos e documentos.
A tendência de restringir os direitos de defesa dos arguidos foi transversal aos diversos procedimentos sancionatórios, incluindo o processo penal, mas tornou-se verdadeiramente paradigmática nos processos contra-ordenacionais por violação de normas do Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiros (RGICSF) e do Código dos Valores Mobiliários (CdVM) – precisamente os procedimento sancionatórios que tinham como potenciais arguidos os bancos e banqueiros. Estes, como recém-eleitos alvos dos ódios de estimação da opinião publicada, seriam as cobaias ideais para testar a abolição quase total dos direitos de defesa dos arguidos na fase administrativa do processo: quem iria atender ou solidarizar-se com as suas queixas e lamentações?
E foi assim que a prescrição do procedimento contra-ordenacional – uma relevante salvaguarda contra erros e abusos judiciários – passou a ser vista como uma injustificada prerrogativa dos arguidos. Com a alteração ao RGICSF introduzida pelo Decreto-Lei n.º 157/2014, “nos casos em que tenha havido ocultação dos factos que são objecto do processo de contraordenação, o prazo de prescrição só corre a partir do conhecimento, por parte do Banco de Portugal, desses factos” (artigo 209.º n.º 2), o que potencialmente eterniza o início do procedimento contra-ordenacional. Assim, daqui a 50 anos, por exemplo, alguém pode ser acusado de ter hoje cometido uma infracção, desde que seja também acusado de a ter ocultado. Do mesmo modo, de acordo com a nova redacção do RGICSF o prazo de suspensão da prescrição passou a poder ir até 10 anos (havendo recurso para o tribunal constitucional), o que significa que um processo contra-ordenacional pode agora correr contra um arguido durante 17 anos e meio (sete anos e meio de prazo de prescrição máximo com interrupções acrescido de 10 anos de suspensão da prescrição). Também no CdVM, por via da Lei n.º 28/2017, o prazo de prescrição foi estendido até aos 12 anos, podendo ser suspenso por tempo ilimitado, desde que haja confirmação da decisão da CMVM, total ou parcial, por um tribunal de primeira instância ou de recurso (artigo 418.º). Para calar os que exigiam sangue, sacrificou-se o direito de qualquer cidadão de não se ver obrigado a defender-se eternamente de um processo ou a defender-se de factos longínquos. Para trás ficou, por isso, a sensata jurisprudência n.º 6/2001, que já dizia: “Isto é, se, por um lado, o legislador se apresenta como um lutador contra a eventual morosidade processual e um defensor do estabelecimento de uma «paz social» resultante de um desejo de se evitar uma possível eternização dos processos, que se manteriam sempre pendentes se fossem sendo praticados diversos actos judiciais e processuais geradores do efeito interruptivo da prescrição, como se acha determinado para os crimes, por outro, não faz sentido que, para ilícitos de menor gravidade, como o são as contra-ordenações, se venha ou possa vir a apresentar como um defensor da lentidão da justiça, como um partidário de uma possível ineficiência da Administração em conseguir resolver os problemas ligados à prescrição do procedimento das coimas, por considerar não ser aplicável ao respectivo regime o quadro muito mais apertado previsto para os crimes e que ele próprio, legislador, veio também entender ser aplicável à prescrição das «coimas»”.
E foi também assim que a prova testemunhal passou também a ser vista como um luxo dos arguidos que haveria que restringir. Com as alterações ao RGICSF e ao CdVM, os arguidos não podem agora indicar mais do que três testemunhas por cada infracção, nem mais do que 12 no total (artigos 219.º-A n.º 3 do RGICSF e 414.º-A n.º 3 do CdVM). Sendo certo que este limite pode ser ultrapassado em casos excepcionais (artigos 219.º-A n.º 4 do RGICSF e 414.º-A n.º 4 do CdVM), é notoriamente absurdo que o número de testemunhas por infracção seja, por regra, idêntico ao previsto… por exemplo… no Código da Estrada. É de facto surpreendente que alguém – neste caso o legislador – tenha considerado razoável que um cidadão acusado de uma infracção sancionada com coima até cinco milhões de euros (e que ainda pode ser agravada, sem limite, nos termos do artigo 211.º-A do RGCISF e 388.º n.º 2 do CdVM) e com pesadas sanções acessórias, apenas possa, por regra, apresentar três testemunhas na fase administrativa do processo.
Aumentaram-se brutalmente as sanções e restringiram-se os direitos dos arguidos de forma escandalosa. Mas ao menos conseguiu-se o objectivo de acelerar os processos?
Não. Aliás, agora que os reguladores não estão tão limitados com prazos de prescrição, os processos de contra-ordenação estão ainda a demorar mais tempo na fase da instrução…
Nuno Salazar Casanova | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas
Subscreva a newsletter e receba os principais destaques sobre Direito e Advocacia.
[mailpoet_form id="1"]