A mediatização da Justiça: nem a força da ignorância, nem a fraqueza da informação excessiva

“Não existe opinião pública, existe opinião publicada.”

– Sir Winston Churchill

Já muito foi escrito sobre este tema e, todavia, tanto de essencial continua por dizer.

O ano que ora finda fez notar, mais do que qualquer outro, que se torna pungente fazer mais uma reflexão, revisitando esta questão.

Os casos que pertencem à Justiça, pela razão de mais não serem do que casos da vida quotidiana, desde tempos imemoriais suscitaram, como ainda hoje suscitam, o interesse de todos.

Já Aquilino retratava a Justiça administrada no Estado Novo no seu “romance” Quando os Lobos Uivam, dando-nos nota do interesse que despertou no público em geral a audiência de julgamento dos beirões que defenderam os terrenos baldios perante a ditadura.

Ora, a sociedade de informação – para mais globalizada – faz com que, inelutavelmente, a Justiça e os casos da Justiça cheguem até nós por diversas vias, mesmo que, ao contrário dos conterrâneos dos beirões retratados pela pena de Aquilino, à partida, não tivéssemos pelos mesmos, ab initio, particular interesse.

A Justiça vive contemporaneamente numa espécie de Big Brother em que a omnipresença dos holofotes nos faz questionar se tal exposição – ou até mesmo monotorização e controlo – se coadunam com um verdeiro Estado de Direito Democrático, com a configuração constitucional que lhe é inerente.

Mais relevante do que isso, será de questionar se, como preconizou George Orwell, esta vigilância mediática funciona como uma espécie de “Ministério da Verdade” que pode reescrever a história dos casos judiciais, desmultiplicando-a em versões a contento.

Importa ainda pôr em equação quem “manipula” quem e o quê: serão as fugas de informação selectivas e cirúrgicas, a fim de ser noticiado exactamente aquilo que “convém”, ou estamos definitivamente confrontados com uma nova forma de censura prévia, típica da sociedade de informação que nos coloca ante excessiva e volumosa informação, a ponto de não conseguirmos estar – verdadeiramente! – informados?

Tantas vezes a proliferação de teses e anti-teses, nos meios de comunicação social perturbam intoleravelmente a realização dos fins de justiça e contendem com garantias dos sujeitos processuais, as quais são basilares e inamovíveis.

Se é certo que se percebe que vai sendo cada vez mais difícil resistir às luzes da ribalta e alguns parecem desesperar por meros “cinco nanossegundos de fama” que sejam, também neste mesmo conspecto a Justiça tem de evoluir na forma como se relaciona com os meios de comunicação e de informação, bem como os seus Agentes devem ter a noção exacta dos interesses que devem prevalecer, porquanto amiudadamente estamos colocados perante matéria de direitos fundamentais.

Tornar a administração da Justiça numa circunstância propícia ao mero show-off não só é desprestigiante para a mesma – e para todos quantos participam na sua administração e realização – como é assaz perigoso e perturbador, pois é necessário que se apreenda, impreterivelmente, a necessidade de serenidade que o dever de guardar sigilo implica.

Assim, nós Advogados temos de ter muito bem aquilatada, por dever de patrocínio, a justa medida das coisas, atento o interesse público de que se reveste a nossa profissão, a qual possui assento na Lei Fundamental, nos termos do disposto no artigo 208.º da Constituição da República Portuguesa.

Nesta conformidade, importa não olvidar o carácter de excepcionalidade da nossa pronúncia pública sobre questões profissionais pendentes, a sua necessidade – em face dos interesses que a mesma visa acautelar – e, de igual modo, a sua proporcionalidade (posto que esta não deverá – e até pensamos que nem poderá – exceder o estritamente indispensável para atingir tal escopo). Mormente, tendo em consideração que o sigilo profissional é fulcral na relação de fidúcia que se estabelece com o Constituinte (os nossos Representados), mas igualmente, pela singela razão de o sigilo proteger interesses inerentes ao Estado de Direito Democrático.

Cada vez é, pois, assumidamente mais imperativo perseverar na concatenação de princípios deontológicos inalienáveis com uma sociedade insaciavelmente faminta de sensacionalismo.

A Justiça hodierna comunica com uma frequência como nunca outrora se viu, mas nem sempre o faz de forma acertada. Há que assumir a sua hiper-mediatização, porquanto esta é incontornável e estamos em crer que irreversível.

A quebra do segredo de justiça é uma questão que urge combater e que reclama solução urgente. Porém, alcançar tal objectivo vai parecendo uma miragem ante a proliferação de obstáculos que a complexidade da vida moderna acrescenta ao problema em equação.

A compatibilização entre o direito à informação, à liberdade de expressão de opinião e o resguardo que a administração da Justiça carece, bem como os direitos dos sujeitos processuais (designadamente à presunção de inocência, à imagem, à honra, à consideração social e a uma efectiva “igualdade de armas” na defesa, bem como a um processo judicial realmente justo e equitativo), ocupam os seus lugares em polos opostos, cujo difícil e desafiante equilíbrio se impõe seja garantido.

E, se o tempo da Justiça é um tempo muito diferente do da comunicação social – repleta de opion makers que reflectem em voz alta sobre fragmentos de casos judiciais – o rigor também não é, certamente, o mesmo, sendo certo que, na verdade, o julgamento social, efémero e rarefeito, é muito mais estribado naquilo que se ouve e lê, em momento prévio ao da decisão judicial, com consequências devastadoras.

Desta forma vai também sendo minada a confiança dos cidadãos nas Instituições, sobretudo nos Tribunais, o que não é, de todo em todo, desejável. Importa desatar o nó górdio: travar qualquer ímpeto de instrumentalização do “justiceiro” que cada um tende a transportar dentro de si e reeducar-se o indivíduo para a cidadania, fazendo-o assimilar que esse seu sentido de justiça é manifestamente parco no que respeita ao conhecimento sobre o funcionamento da mesma e que se estriba numa  certa percepção de justiça individual, a qual pode não coadunar-se com a Justiça administrada por Órgãos de Soberania, o que não significa que o Sistema de Justiça não esteja a funcionar na sua plenitude.

Ademais na época, por excelência, da auto-limitação voluntária da privacidade, da proliferação da emissão de opinião, da circulação e fluidez da informação e, bem assim, da efervescência de versões de factos, potenciada pelo fenómeno das redes sociais, não podemos “aconselhar” a Justiça a “remeter-se ao silêncio”. Importa antes que a Justiça assuma que possui também um cariz pedagógico e aprenda a comunicar, colmatando as deficiências supra assinaladas, veiculando a informação com acerto. Transforma-se, assim, a proliferação de informação desconexa e aleatória, na “verdade” rigorosa, possível e legalmente admissível, a cada momento, do evoluir de um processo judicial. Desta forma, tenderão a prevalecer factos sedimentados que nenhum Winston Smith tenha a veleidade de pretender reescrever, pois, nunca, um Estado de Direito Democrático verá a sua força residir na ignorância.

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