A escolha do Advogado como meio de ilisão da presunção de inocência do Arguido

Já muito se falou em Portugal sobre os ‘mega processos’ e respetivas vicissitudes — e, sobretudo, sobre a manifesta culpabilidade de quem é acusado, suspeito ou apenas inquirido pelas competentes autoridades.

Sobre o que me debruço hoje é coisa — ou nota — distinta.

É que vem trilhando caminho uma tendência mais corrosiva e atentatória do principio da presunção de inocência que muitas violações de disposições processuais. Aquela segundo a qual o grau de culpabilidade e suspeição dos Arguidos ou suspeitos de um determinado processo é aferido pelo Advogado ou escritório de Advogados escolhido para assumir a representação e defesa dos respetivos direitos e interesses!

Para que não falhe à verdade, veja-se o artigo publicado no Correio da Manhã a propósito de um dos casos mediáticos que, sazonalmente e a par com outros, assume destaque nos media portugueses:

Corrupção muito gold

Pelos advogados já nomeados, é possível avaliar a dimensão e a gravidade do caso.

É difícil acreditar que a operação Labirinto da PJ só tenha apanhado inocentes. Mas muito há ainda por esclarecer. No entanto, para além da demissão de um ministro, é possível avaliar a gravidade do caso pelos advogados que, de imediato, foram chamados pelos suspeitos. A defender que tudo isto, afinal, não é bem o que parece à partida estarão alguns dos que fizeram o mesmo nos processos Bragarques, Portucale, Casa Pia, Face Oculta, BPP, Furacão e secretas. E, tratando-se de alguns dos mais bem pagos advogados do país, essa é mais uma confirmação de que este é um caso de corrupção gold.”

Ainda de outro modo: os envolvidos (ou pelo menos alguns dos envolvidos) na “operação Labirinto” certamente são culpados dos crimes que se assume estarem a ser investigados pela Polícia Judiciária (embora não se identifiquem nem uns, nem outros).

E assim se conclui porque os Advogados “chamados pelos suspeitos” já foram Advogados noutros processos de nome igualmente bombástico — a escolha de Advogado é, nestes termos, fator que concorre com o nome faustoso com que se tenha batizado a Investigação e com a demissão de um ministro (que num país de primeiro mundo, quiçá se reputaria apenas de sintoma do estádio evolutivo do sistema político e governativo, sentido de dever e de função).

Poderia dizer-se que a especialização da Advocacia explicaria o fenómeno. Acaso acreditar que o estudo, o esforço, o empenho, a competência, a experiência justificariam o granjear do respeito dos pares e do público — na Advocacia, como em qualquer outra profissão. E, por conseguinte, que a meritocracia tivesse algo a ver com a(s) decisão(ões) de escolha de um Advogado.

Ou equacionar-se que nos termos da Constituição, Portugal é uma República livre, justa e solidária e um Estado de Direito Democrático. E que, por isso, o princípio constitucional (e internacional) da presunção de inocência — segundo o qual «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação» — não pode ser letra morta, cair no esquecimento. Ser simplesmente votado ao degredo.

Mas, claro, perante “tudo isto”, pouco releva o que dizem as Leis do País.

Pouco importa que o princípio da presunção da inocência seja um legado da revolução francesa e do jusnaturalismo iluminista, um princípio assumido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH), pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e, a par das demais Constituições livres e democráticas, pela Constituição da República Portuguesa (CRP). E que seja de tal modo caro que, no decurso do ano transato, foi objeto de uma Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho destinada a promover o reforço do mesmo nas legislações dos Estados-Membros.

De nada vale que o princípio da presunção da inocência seja sinónimo, na sua génese, da luta contra os abusos e que, hoje, seja (ou devesse ser) um reflexo (ou a prova dada) de uma sã reforma assente no respeito pela pessoa humana.

É perigoso o rumo que se toma onde o «inocente até prova em contrário» — permita-se-me que vulgarize e, ainda que de forma porventura pouco rigorosa, assim universalize o princípio — se transforma num «culpado ainda que não haja prova».

E pior ainda que isto suceda com a conivência dos nossos Tribunais. Ou de um Tribunal — não nos deixemos cair naqueles-mesmos vícios de generalização — que afirma numa Sentença proferida que:

 “A carência, quando não total ausência, de elementos precisos quanto à real situação económica e financeira dos arguidos singulares269, tendo-se por pouco fidedignos dessa real situação os elementos carreados para os autos pelos próprios, ainda que ponderáveis, afigurando-se neste ponto resultarem relevantes os próprios currículos profissionais dos arguidos e cargos exercidos enquanto indicadores duma potencial situação económica mais ou menos desafogada; nesta matéria não é também despicienda a consideração da circunstância de todos os arguidos pleitearem nestes autos – num processo complexo e de longa duração – recorrendo a patrocínio forense não oficioso, ao invés, atribuído a escritórios de advogados de prestigiado renome.”[1]

Não desconhecemos, obviamente, o princípio processual penal nos termos do qual o Juiz deve apreciar a prova produzida de acordo com as regras da experiência e a sua livre convicção. Pois que há muito — também sinal dos tempos modernos — se abandonou o sistema da prova legal, nos termos da qual ao Juiz caberia apenas seguir o elenco pré-determinado por Lei.

O que não é, porém, sinónimo de arbitrariedade ou despotismo — precisamente em nome dos tais princípios e ideais democráticos, próprios de um Estado de Direito. Muito pelo contrário, e como Figueiredo Dias[2] melhor o disse, é uma liberdade de acordo com um dever — a busca da «verdade material» — que implica, entre o mais, que a decisão judicial (qualquer decisão judicial) se imponha aos seus destinatários pela racionalidade objetivo-fundamentadora nela ínsita.

Neste caso em concreto, os Arguidos tinham juntado aos autos, entre o mais, declarações de IRS e respetivas notas de liquidação. Foram, pois, estes os tais “elementos pouco fidedignos” — e menos fidedignos ainda quando no outro prato da balança estão os ditos Advogados. Os Advogados “de renome”. Os tais Advogados que se afirma, num lado, e se deixa subentendido, no outro, serem os “mais bem pagos advogados do país” — mesmo que em nenhum dos casos se tenha tido acesso a qualquer elemento que o permita afirmar.

Reafirmo: é perigoso o rumo que se toma, e pena-me enquanto Advogada (com o conforto de o poder afirmar, já que — embora exercendo em escritório de prestigiado renome, no sentido próprio do termo — não me encontro entre “os mais bem pagos do país”, expressão aqui empregue apenas enquanto significante do respetivo mérito profissional) e, sobretudo, como cidadã.

Pois que quando, num piscar de olhos, se transforma o «inocente até prova em contrário» num «culpado ainda que haja prova em contrário», desprotegido fica o cidadão comum. E o Advogado. Um e outro sem que possam valer-se de um sistema jurídico assente no respeito dos fundamentais direitos da pessoa humana e enformado por princípios-garantias enquanto mecanismos de sustentação, proteção e tutela do indivíduo perante o Estado e os seus co-cidadãos…

Também porque vão estas notas longas, não me atrevo na Defesa da Profissão e no que a qualidade da assistência por Advogado revela, enquanto índice de proteção e respeito dos direitos, liberdades e garantias mais fundamentais, de um determinado sistema jurídico. Digo apenas que, para o futuro, não são precisas medidas impactantes nem alterações legislativas. Bastará sermos fiéis à boa cartilha que temos. E reconhecer, com Carnelutti, que «o processo penal é um banco de prova da civilização não só porque o delito, com tintas mais ou menos fortes, é o drama da inimizade e da discórdia, mas por aquilo que é a correlação entre quem o cometeu ou se diz que o tenha cometido e aqueles que a ele assistem[3]

Dirce Rente | Fórum Penal – Associação de Advogados Penalistas

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[1] Sentença proferida pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão no âmbito do processo n.º 41/12.5YUSTR.
[2] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, Coimbra, 1974, p. 202.
[3] Francesco Carnelutti, As Misérias do Processo Penal, Tradução, José Antonio Cardinalli, Conan, 1995, p. 7.

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