Amor materno: mito ou realidade?

Nesse domingo de dia das mães (no Brasil, pois em Portugal foi o passado), andava eu a passar a vista pela timeline do Twitter, quando a chamada de um artigo me chamou a atenção: “A maternidade é um processo social e afetivo, para além de biológico”. O link levava a um texto que defende a descriminalização do aborto no Brasil (tema que pretendo abordar em um próximo texto).

Aquela chamada me fez pensar no que eu havia escrito, na minha tese de doutoramento, em um capítulo dedicado aos novos contornos da parentalidade, sobre o (presumido) amor materno, que considero (em certa medida, como se verá) um mito que vincula-se a outro: o mito da madrasta má, que materializam a dualidade, do bem e do mal, do mundo infantil. Nas histórias e contos, a madrasta é sempre retratada como uma figura maléfica e cruel; por outro lado, a mãe (viva ou falecida) é, quase invariavelmente, retratada como uma figura amorosa e dedicada.

Em Portugal, relativamente à mãe, a filiação resulta do fato do nascimento, de acordo com o Art. 1796º, n. 1, do Código Civil. No Brasil, de acordo com o art. 1603 do CC, a filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil. O pai e/ou a mãe podem fazer a declaração perante o Oficial de Registro Civil, de posse da Declaração de Nascido Vivo, documento emitido pelo hospital onde o bebê tiver nascido.

Quando a criança não nasce em centro de saúde e, portanto, não tem a DNV, o Oficial de Registro Civil pode fazer o registro mediante a declaração: de duas testemunhas que tenham visto o recém nascido ou do médico/parteira que tiver assistido o parto, de acordo com a Lei de Registros Públicos. Assim, tanto em Portugal como no Brasil, a maternidade jurídica segue o parto. Ambos os sistemas consideram que mater semper certa est. Mas será?

Com os avanços biotecnológicos, nem sempre a mulher que gestou e pariu será a mãe do recém-nascido, pelo menos no sentido biologista arquitetado pelas legislações civis indicadas. Na hipótese de gravidez com recurso a ovócitos de outra mulher, a parturiente não terá qualquer vinculação genética com o filho, mas será reputada mãe dele. Na ocorrência do recurso à maternidade de substituição (permitida no Brasil, mas ainda não permitida em Portugal), a “mãe portadora” ou “mãe gestacional” não será a mãe jurídica. Se houver recurso a gametas de terceira pessoa, a mãe jurídica não terá enfrentado gravidez ou parto, e nem terá consanguinidade com o descendente. No caso de um casal de gays, não haverá mãe alguma! Na hipótese de união homoafetiva feminina, serão duas mães e, não raras vezes, uma carrega no ventre o embrião concebido com o óvulo da outra.

É marcante, portanto, o traço distintivo que separa a procriação da filiação em muitos casos. Nesse cenário, a filiação poderá advir de uma reprodução natural, nos moldes clássicos, mas uma gravidez nem sempre acarretará uma maternidade jurídica. A vinculação da parentalidade ao parto se mostra, portanto, falível. Ressalte-se, entretanto, que até o presente momento, não há como uma parturiente em Portugal afastar o status legal de mãe.

No Brasil, existe já há alguns anos a possibilidade de lésbicas levarem a cabo o que o Conselho Federal de Medicina (CFM) chama de “gestação compartilhada”. Todavia, somente em 2016 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou um provimento para que o nome de ambas as mães (casadas ou vivendo em união estável documentada) possam constar no registro civil do filho, sem que elas tenham que propor uma ação em tribunal.

Nessa conjuntura, será que ainda faz algum sentido vincular a maternidade ao parto e continuar acreditando cegamente no amor materno, como um corolário certo do elo de sangue?

Se o sangue fosse um elemento (sumo e onipotente) afiançador de que a função parental seria convenientemente praticada, seria desnecessária a presença de diversos institutos no ordenamento jurídico, tais como a confiança judicial e adoção, e medidas de limitação e inibição das responsabilidades parentais. Diante dos casos de maus tratos, abusos físicos, psicológicos e sexuais, negligência física, emocional e educativa, infanticídios e abandonos selvagens de recém nascidos cometidos por mães biológicas, não é demais dizer que o bom exercício do papel materno muito pouco (ou quase nada) vincula-se ao sangue.

Assim, arrisco dizer que o amor materno – na forma como foi construído – não passa de um mito ou quimera, não devendo ser considerado um dado universal, e muito menos absoluto, que teria origem na mera junção dos gametas dos progenitores. Não vislumbro o amor parental como algo inerente e conatural ao nascimento dos filhos, muito embora na maioria dos casos possa parecer.

A regra geral, tanto em Portugal como no Brasil, é a de que os progenitores biológicos exercerão as responsabilidades parentais de forma efetiva e afetiva ou, pelo menos, minimamente digna. Entretanto, entendo que tal fato não se afigura suficiente para transformar o amor maternal em algo inato, pura e simplesmente resultante da vinculação genética.

Os papéis de mãe e de pai podem ser desempenhados, de forma valorosa e capaz, por qualquer pessoa, inclusive por aqueles geneticamente ligados à criança. Mas, certamente, o hábil funcionamento da parentalidade não se restringe aos pais biológicos e vincula-se muito mais com o cuidado e o zelo empregados com afeto e por vontade, do que com a sorte (ou sina) de possuir marcadores genéticos relacionados. Importa lembrar que, nas famílias homoafetivas, a criança necessariamente será geneticamente conectada a somente um dos pais ou uma das mães.

Diante dessas afirmações, posso dizer que o amor materno como produto do sangue é tão real quanto o Pai Natal (Papai Noel, para os brasileiros) ou o Coelhinho da Páscoa. É fruto dessas “verdades” que são repetidas ao longo dos tempos pelas pessoas, pelos livros, pelos poemas, pelos contos e filmes infantis, e terminam se tornando um dado categórico. Todavia, isso não quer dizer que o amor materno seja um mito. Ele existe, ao amor materno é uma realidade que está, entretanto, assentada em um outro elemento.

Mãe é e se torna apenas aquela que efetivamente ama: pode ser a que gerou e deu à luz; pode ser a que adotou e cuidou; pode ser a que valeu-se da dádiva de óvulos; pode ser a que planejou e esperou junto com a esposa ou companheira; pode ser a que ultrapassou a ausência de útero (ou outra condição impeditiva da gravidez) com o recurso à maternidade de substituição. Na ausência de afeto, a parturiente será apenas e tão somente procriadora, geradora, progenitora, ascendente ou qualquer outra denominação extraída do vocabulário técnico, menos mãe.

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